Português burro!
Rascunhos
Prof. Me. Cídio Lopes
O título aberrante foi apenas para chamar a atenção. A reflexão desenvolvida aqui será justamente no sentido oposto, o título é apenas parte das dinâmicas extravagantes da internete, que, devemos lembrar, não é de todo estrangeiro à cultura informal no Brasil.
O segundo motivo do título é abrir a conversa sobre um tema que é pessoal. Eu tenho no tema da cultura lusitana, desse português à solta como nos diz Agostinho da Silva, objeto dos meus estudos como professor de filosofia e como processo identitário. Como luso descendente e assim identificado por todos na comunidade onde nasci e cresci, Leste de Minas Gerais, minha pesquisa ecoa aquilo que Nietzsche/Schopenahuer indicou como obrigatoriedades de uma boa pesquisa. Isto é, é preciso manter a ligação entre vontade e representação; o texto terá mais força quando tratamos de algo que nos habita como vontade. Sempre quis tratar do tema de modo profissional, justamente por me ver nele, a título de evidenciar esse problema ou o complexo em que está metido o problema de ser filho o “filho do português” numa cultura que no seu cotidiano atribui a falta de inteligência ao porltuguês.
O tema habita minha trajetória acadêmica de modo sempre silenciado. Ao chegar no mundo universitário, mesmo sendo ele o da Igreja Católica da Teologia da Libertação, ainda que aprender que esse mesmo “burro” era o colonizador, malvado, causador fundamental de tudo que é ruim a singrar no Brasil. Responsável pela totalidade da escravidão, extermínio dos amáveis nativos. Restava-me ser índio ou afrodescendente. Essa era a moda. De resto, por curto-circuito, o pensamento de Gilberto Freyre ou do Darcy Ribeiro, Civilização Brasileira, eram todos jogados na lata da “tentativa” de aplainar as asperezas da colonização. O tema ainda era vincado sob a sigla do “luso-tropicalismo” e atado ao salazarismo.
Por tudo isso, deveria se calar ou adotar a pecha de ser politicamente de direita, ou extrema-direita. De todo lado que se mexia, logo uma etiqueta era posta, “saudosista”, etc.
A moda era abraçar as causas dos “excluídos” de toda sorte; e silenciar, negar, aceitar, que o dominador era fundamentalmente os portugueses; e que era algo inaceitável se identificar com o “dominador”; tese aparada por várias artimanhas ditas marxistas e libertárias. Era mesmo impedido de formular qualquer dúvida a esse respeito, pois logo lhe eram destinados uma etiqueta, preferencialmente africana. Nas múltiplas esquerdas os rótulos variavam, mas todos execravam o português.
O problema, portanto, é complexo e se assenta sob amalgamas de ideologias as mais diversas, mas, majoritariamente, esse problema cultural se assenta ou se constitui no entrelaçamento das várias derivações marxistas que correm pelos corredores universitários. Assumir-se o que se é, e nesse caso que sé é luso-descendente ou simplesmente o “português” da cidade, tem sido um lento trabalho de retirar algo da memória. E por retomar esse oculto em si, não se pode aceitar a pecha de saudosista favorável dessa ou daquela violência. Superar ou delinear os efeitos nefastos de toda uma negação, que também se deu com os afro-brasileiros, que se deu pela construção filosófico-teológico de uma figura “dominadora” e causadora da totalidade dos “rangeres” de dentes, ocorre em várias frentes. E tal projeto não se trata de uma saudade de quando “se era o opressor”, mas de que há uma identidade lusitana em todas as latitudes do que seja hoje o Brasil e que a mesma é suplantada, mesmo que sejam todos beneficiário dos efeitos positivos dessa colonização. Dentre eles, os efeitos positivos da unidade territorial que é o Brasil e o uso de uma língua comum.
O primeiro é se dar conta desse direito, desse lugar apagado, mas que sempre foi a minha totalidade fundamental como pesquisador. Para além de uma filiação, sobretudo nos Diretórios Acadêmicos, mas de um nascimento nesse lugar cultural. O que não elimina o caráter opção e construção cultural desse lugar. O que tenho me proposto na atualidade, especialmente nos estudos do pensamento de Agostinho da Silva, é justamente delinear todo um universo cultural familiar, do ponto de vista mais imediato, e depois de como esse traço cultural e étnico se faz presente em vários setores da vida social. Dizer, fazer emergir, cultivar, assumir, apontar, serão verbos que se inscrevem no desejo de ser sujeito de si; de aproximar os “afetos” dos “pensamentos”; não só citando Nietzsche ou Espinosa, mas sendo radical em retomar uma memoria afetiva (afectiva) lusitana que habita entre nós ou mesmo em nós.
Tal descoberta não é para recolocar um lugar comum, que uma leitura apressada pode levar. Identificar-se com uma cultura, que factualmente ocupou sim protagonismo do processo de colonização, tem implicações específicas, mesmo sendo dominador há uma identidade cultural. Em resumo, há uma dada cultura que em dado momento, sobretudo para resolver seus problemas econômicos internos, parte para o exterior na busca dessa solução. E isso não faz dela inexistente. E se coloca nesse mundo sob essa perspectiva econômica, levando consigo modos e maneira de o fazer. Como brasileiro sou beneficiado da unidade territorial desse vasto país, feita à base de violentas repressões militares das varias revoltas regionais, devo considerar que sendo pertencente à essa etnia também me sinto beneficiado por isso. O que não posso é me impedir de assumir isso pautado numa retórica que cria de modo idílico um mundo sem “luta de classe”. Nesse exato momento, marxistas, ateus, crentes, liberais, que utilizam energia elétrica, computador, somos todos beneficiários das hidrelétricas, essas que retiram famílias de seus lares, inundam topografias tradicionais, etc. Se levarmos essa lógica ao seu extremo, como humanos só podemos concluir que deveríamos desistir do mundo; pois tudo gera impacto; e o mesmo pode ser visto como algo nefasto.
O problema da colonização, portanto, não é só da esfera do português, mas agora da esfera da dialética da consciência. O problema não está lá fora, no português, mas está dentro de cada um de nós. É preciso pensar como ocupamos e colonizamos as consciências. Primeiro a minha consciência e, depois, como relaciono-me com as outras consciências; especialmente como o masculino relaciona-se com o feminino.
Nessa diáspora dos naturais de Portugal, eles encontraram pelo caminho vários sócios. E com eles se fizeram vários “modelos de negócios”. Sendo sujeitos desse processo, que economicamente extrai vantagens, legaram suas marcas não só na modelagem de “business”, mas na língua que se falava, no ordenamento moral/jurídico e com seu “sataf”, o “time”, foram fixando-se como moradores desses novos lugares.
Ainda no âmbito de solucionar problemas internos, vários patrícios se deslocam para novas terras; e nelas, participam diretamente ou indiretamente do estabelecimento de novos modos de posse dos territórios; confrontando de modo violento com antigos habitantes das regiões; ou associando a eles, segundo interesses dos mesmos, para fins de fazerem guerras com outros.
O processo colonial, portanto, se assenta na solução de um problema interno, como nos ensina Alfredo Bosi em Dialética da Colonização. O que move a colonização é a busca pela solução de problemas internos noutros lugares; o que gera o quadro de novas parcerias econômicas feitas na base da negociação ou através da guerra. Solução que não é exclusivo de um povo, no caso aqui do “Europeu”. A colonização consiste em recurso humano verificável por toda parte e os expedientes desse processo se repetem, mesmo entre os nativos do que hoje denominamos América ou, sobretudo, entre os reinos localizados no continente africano, que tinham no negócio da guerra e captura de escravos uma prática já existente antes das navegações portuguesas e espanholas. E com isso não se quer aplainar a barbaridade da escravidão, dos Astecas aos Japonese, em nossos dias é inconcebível tal ato.
Recolocar a questão da presença da luso-descendência, portanto, é situar uma questão em nova perspectiva até então impedida de assim o fazer. Impedida pela estratégia de situar como fonte de todos os problemas apenas um “colonizador” unilateral; possuidor da totalidade de todo o processo, com poderes extraordinários de governar em todos os lugares; semelhantes ao poder que hoje se tem o “dono do Facebook”, que pode simplesmente retirar do ar a tal rede social; e milhões de usuários ficaram sem acesso.
Nada mais simplista do que atribuir a um grupo tudo o que de ruim e pior nesse processo de interação humana. Por outro lado, utiliza-se o método de ridicularizar todos os feitos históricos de tal parcela que compõe o processo colonial e formação do que seja o Brasil. Seja pelo adjetivo amplamente difundido no Brasil de que o português seja burro, isto é, alguém que não tem inteligência, seja por toda uma negação ou destituição dos feitos históricos dessa etnia. Associando ela a “maldade” do mundo. Dois caminhos amplamente construídos no Brasil como forma de suplantar e negar o fato de que somos lusófonos e como tal, dotado de uma multiplicidade que se aglutina em torno da língua e de vários outros traços culturais oriundos de Portugal, da África e dos Povos Originários dessas terras.
O processo de “nadificação” avança por todos os lados; quando se ridiculariza tudo o que foi feito por essa dada etnia. Não importa o que seja; até mesmo ao ponto de omitir os fatos históricos. O êxito do processo de manter uma unidade política em um vasto território, que é o Brasil, por exemplo, fica sem uma explicação. Não se fala nisso; apenas se discorre longamente da crueldade desse ou daquele governo em repreender essa ou aquela revolta. Contudo se cala e não se fala de que somos beneficiários dessas repreensões. Apenas se discorre sobre o negativo, dando contornos vários ao negativo, que é de fato isso; o Estado violenta quem deseja lhe fracionar, rebelar, etc.
Esse mesmo acadêmico negador, podendo ele ser socialista ou liberal, acaba beneficiando as ideias provindas das metrópoles. Esse pessimismo estrutural consigo e essa recusa a assumir uma identidade cultural; gera na prática a vassalagem do mundo acadêmico e das elites. Vejamos o caso mais particular, das ciências humanas e sociais. O quanto essas áreas são colonizadas pelo pensamento francês? Foucault é a bíblia do momento. O problema não será resolvido banindo Foucault, pensamento raso, a ideia é como estabelecer relações equilibradas e não de vassalagem; e o tema passa necessariamente por superar essa ideia ingênua que vê com bons olhos tudo que é de fora; negando e exterminando nomeadamente o grupo étnico que compôs o Brasil enquanto elite. A crítica pode e deve ser feita, foram uma elite extrativista e escravocrata, mas é daí que devemos partir para superar.
Devemos somar outra negação discursiva tão importante na formação do pensamento e cultura brasileira, trata-se da escravidão. Esse processo trágico para a formação do país não é tratado a contento, e com efeitos ainda presente em nossos dias, como muito tem delineado Jessé de Souza. As proposições estribadas nesse marxismo diluído e de corredores universitários são modelos insuficientes. Por não tratarem desse ocultamento. Na origem dos problema salta-me aos olhos a questão básica da leitura de si; e não da importação de modelos doutras culturas dominantes; de um afastamento de si; da importação de identidades, quando não identidade construídas das fantasias ora marxistas, ora dos delírios dos mais variados liberais e, na atualidade, dessa aberração colonial chamada neoliberalismo.
Posto isso, ressalta-se que não se pretende mitigar certos fatos históricos, muito bem contornados, delineados pelos historiadores. Houve matança no Leste de Minas, os métodos eram cruéis, Haruf Salman os documentou muito bem. Assim se deu a ocupação daquela região. No cenário maior, houve escravidão; havia a brutalidade de se manter escravos; nada disso é negável; fustigado na sua dureza. Contudo, não é tudo; o real não se esgota nessa descrição; o real tem suas dinâmicas econômicas e tal interação implicava mais vetores para se explicar. Implicava relações que não estavam definidas de modo simples entre “pretos e brancos”.
O fato mais crucial é que os lugares atuais de narrativas, nomeadamente de algumas universidades públicas brasileiras e suas associações com o mundo editorial e publicitário, são ocupados por pessoas que habitualmente negam a “lusitanidade”; como negam a “africanidade”. Ora eles não falam, portanto silenciam, ora eles se dispõem a falar, como benemerentes, daquilo que não são, mas porque é o politicamente correto e com isso velam.
Retomar e reascender o debate do que seja esse grande corpo de afetos em solo brasileiro, a “lusitanidade”, é colocar o que julgamos ser estrutural na compreensão do que seja Brasil. É trazer a lume um continente de desejos silenciados, aproximando as palavras das coisas ou perpassando os pensamentos dos afetos, como fiadores do que seja o real.
Por fim, retomar a diáspora seja lusitana ou africana não é um desejo de retorno à uma terra, mas retomar um lugar psíquico cultural de estar no presente. O debate sobre o que seja os Estados nacionais não se funde como a identidade cultura. Ainda que presente e necessário do ponto de vista prático.
A lusofonia tem justamente sua riqueza cultural na medida em que ocorre para além da ideia de identidade entre etnia e nacionalidade, já que ela é multiétnica e multinacional. A exemplo dos judeus, o modo e expressão lusitana é composto por interseções asiáticas, africanas, americanas e europeias e sua riqueza está justamente em não subsumir o complexo ao uno; e muito menos subsumir a riqueza cultural que a compõe à uma faceta dessa cultura, como desejado pelo salazarismo. Portugal tem seu lugar histórico como o disseminador desse modo, e nesse sentido Agostinho da Silva muito bem nos ensina. Uma vez que somos humanos que vivemos nessa cultura, somos agora todos protagonistas dela.
1a. editado no dia 16.05.2020
2a. edição no dia 04.02.2021 (além da gramática, fizemos alguns ajustes conceituais.)
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