Racismo e machismo

Racismo e machismo

Racismo, machismo e a crueldade dos normais

Prof. Me. Cídio Lopes de Almeida

LOPES DE ALMEIDA, C. Racismo, machismo e a crueldade dos normais. São Paulo: AMF3. 2021. Acessível em: https://amf3.com.br/racismo-e-machismo

A figura idílica do interior, como ficou bem tematizado no filme Ilustre Cidadão, da pequena vila, só é mesmo uma imagem fantasiosa. Criada na cabeça muito mais ligada às memórias infantis do que nas reais dinâmicas sociais aí urdidas e mantidas há séculos. 

No contato com uma cidade do interior de Minas Gerais, bem encravada na ilustre “Estrada Real”, isto é, um antigo caminho/estrada por onde ocorria o fluxo de pessoas e minerais, notamos que pouco se mudou em termos das dinâmicas sociais. 

A coisa mais repugnante que perdura é o racismo. Em pé de igualdade o machismo é outro traço. Esses dois elementos são a normalidade. Os normais, os de famílias importantes, são fosseis ambulantes desse necrose social. Nós, do mundo académico e imersos nas grandes cidades, até esquecemos dessa aberração, que se faz presente nas periferias das Cosmópolis e ali até os mais orgânicos intelectuais tendem a esquecer do problema. De encontrar o problema na sua crueza; num estado naif poderíamos dizer. 

Em rápida olhada, no encontro, na escuta da retórica do cotidiano. Salta-nos aos olhos como se espezinham os negros, suas manifestações religiosas, seja naquilo que ela se mostra no sincrético ou na forma tradicional das oferendas aos orixás. Ademais, como se atribui o ruim ou feio e até o grotesco ao negro. Ou ainda, como logo se procura associar a eles uma licenciosidade moral. 

Para tornar ainda mais complexa a situação, setores de uma nova vaga cristã atuam em tornar tais racismos e machismos em categoria religiosa.   Naquela ânsia do monoteísmo por um exercício de poder sobre a totalidade do real, o negro e tudo o que está ligado à sua história de violentado é subsumida como o outro a ser execrado. Nessa teologia do negativo, as novas experiências cristãs, enfeixas num vasto leque denominado pentecostalismo, atuam numa normalização do racismo e do machismo. 

Associar o escuro como ruim. A mulher como fraca. Tentar ajeitar que ‘é negro, mas boa pessoa’ ou “mulher macha”. São os elementos estruturantes da vida normal do interior. Na qual se continua a nascer pessoas em extrema desigualdade social e cultural. Pessoas já inscritas num “guenos” (família) e sendo ela a filha do preto da vila, jamais romperá um circuito de pobreza, sub-trabalhos, e de ter sua dignidade aviltada dos mais variados modos. 

Seja na retórica dos meios formais, como nas escolas e igrejas, ou na vida cotidiana, pululam racismo e machismos. Que estrutura e mantém um encobrimento ridículo desses fatos grotescos. Uma mistura que vai do sistemático alijamento material desses que foram brutalmente escravizados, à um falar cotidiano que impõe todos os dias um lugar de limbo existencial desse outro. 

Essa retórica violenta e normalizada tem na figura do macho seu fundamento. O ser predador, ser colonizador como posse extrativista do outro. Dessa consciência que estabelece uma “dialética” não de diálogo, mas de posse, violação do outro. Que urde nas suas fantasias de dominação, para aplacar o medo, um mundo na base da ameaça, do medo, sobre os seus, esposa e filhos, e depois sobre esse outro que é o preferencialmente o negro. Do qual, devemos ainda distinguir, recai com mais violência sobre a mulher negra. ‘Espaço’ das fantasias erótico-egoísta do macho “alfa”. 

A essa colonização, que podemos aplicar a ideia de que seja uma dialética, dinâmica, é precisamos superar. 

E para enfrentar o tema do machismo, do racismo devemos começar pelo sagrado. É por aí que se deve urdir a libertação. O primeiro passo nos remete muito bem ao que o Prof. Dr. Marcio Achtschin Santos registra em “Teofilo Otoni, os monumentos escravistas e a recusa da sua negritude”. Para o historiador, há um apagamento sistémico do papel relevante dos negros na história e memória local, assim concluímos da nossa leitura. Não é que não exista algo “positivo” para dizer deles. O que ocorre é que há um apagamento sistémico do outro, nesse caso do negro e da mulher. 

Na cultura humana nada é natural, mas tudo é intencional. O racismo e machismo do interior tem que ser cultivado a cada dia, do contrário ele desapareceria. E ele é feito nas religiões monoteístas, nas suas mais variadas formas. Decorre daí outro núcleo importante que perpetua isso: a família normal, aquela centrada no macho violento. 

A incógnita é saber como a reviravolta de Jesus Cristo, rompendo com o sagrado do pai-macho para o amor, essa força cósmica e tão feminina, pode ser usado em nossos dias para sustentar a normalidade racista e machista. Como os “crentes” perverteram o amor em ódio? 

  


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