Da inteligência artificial à inteligência analógica

Da inteligência artificial à inteligência analógica

Da inteligência artificial à inteligência analógica

Cídio Lopes de Almeida

Doutorando em Ciências das Religiões

Faculdade Unida de Vitória

Bolsista FAPES

O renomado cientista Miguel Nicolelis é enfático: não há inteligência artificial; o que existe é uma grande jogada de marketing. Contudo, em que consiste esta famigerada I.A.? De um modo geral, pode-se notar duas ideias projetadas sobre esta sigla. A primeira é a de que haverá uma realidade capaz de executar atividades antes feitas por humanos. A segunda, mais técnica, é que existe um modelo de linguagem que se comporta com certa aparência de inteligência em interações com humanos. 

Antes de avançarmos na resenha, para o cientista não haveria uma inteligência artificial porque o funcionamento da inteligência humana não é binário, como é o caso dos sistemas computacionais. O nosso cérebro, especialidade de Nicolelis, vai além de um fluxo de pulsos energéticos, ainda que há energia no seu funcionamento. A ciência ainda não consegue explicar por completo como o cérebro funciona, mas se sabe bem que o pensamento não é uma projeção exata de dados fluxos energéticos, isto é, dado uma carga X tem-se o pensamento humano sobre uma maça. E por este aspecto complexo ele é considerado analógico. Este processo não se verifica nas dinâmicas computacionais, que é todo arquitetado a partir da presença de energia e sua ausência, que é representado por 0 e 1.

Retomando o curso, vamos por partes. A ideia mais geral, e até certo ponto ficcional, é a de que finalmente “inventamos” robôs inteligentes, como os que aparecem nos filmes. Nesta esfera, há um otimismo paradoxal: a I.A. será uma força de trabalho gratuita. A contradição é que ela substituirá a força de trabalho dos humanos, situação que caminha em sentido contrário ao otimismo da maioria se considerarmos que as condições do trabalho estão cada vez mais precarizadas. As “bigtechs” já têm feito uso dessa tecnologia para se comunicar com usuários e vender seus produtos. Provedores de hospedagem de sites, por exemplo, oferecem “consultoria” com I.A., que simula o atendimento humano. Você manifesta seus objetivos e interesses e, “como se” estivesse tratando com um humano, recebe dicas e até modelos de sites que lhe atenderão. 

Podemos avaliar se tais dicas têm alguma validade, mas não podemos negar o fato de que esse simulacro de atendimento humano já é praticado. Dentro dessa perspectiva, não se pode ignorar que, ao ampliar o panorama para uma apreciação das condições de trabalho desde os anos 1990 até hoje, um certo otimismo sobre a I.A. contribui para solapar ainda mais essas condições. Trata-se de uma tecnologia que aprofunda a precarização do trabalho humano. Como simulacro de trabalho humano, ela gera valor sem remuneração e pode ser replicada em quantidades exponenciais — algo que nem mesmo as “plantations” conseguiram. 

A segunda possibilidade de apreciação da I.A. reside em seus aspectos técnicos e instrumentais. De certo modo, esse modelo de linguagem vinculado a processadores computacionais pode ser utilizado por nós, humanos. Tem o potencial de amplificar o trabalho humano e substituir nossa atenção para algumas tarefas. Não sem contradições: esse aumento de produção, como ocorreu com os corretores de texto no final dos anos 1990, pode ser confundido com uma substituição do trabalho humano. Assim, o humano acaba se retirando tanto do processo criativo quanto do relacional. A criação passa a ser entendida como algo que se resume a “treinar” I.A.s para que elas emulem o comportamento humano, como no caso dos chats de atendimento das prestadoras de serviços telefônicos. 

Nessa perspectiva, outra prática que pode ser verificada é contornarmos a importância da interação entre humanos. O “face a face”, como tematizado por filósofos como Emmanuel Levinas (1906–1995), deixa de existir, tratado como algo secundário ou apenas um custo a ser cortado. 

A ausência do humano nos processos é evidente em exemplos como os modelos de Educação a Distância (EAD) no Brasil. De modo geral, esses cursos são marcados por “aulas gravadas” e “textos em PDF”, configurando uma educação que parece funcionar sem o encontro entre professores e alunos. Encontramos vídeos e textos, mas o encontro humano se torna escasso. Ver um vídeo de um professor não é uma situação de presença entre um educador e os estudantes. São raros os cursos em que as aulas são síncronas, reunindo pequenas turmas e professores, “ao vivo”, com interações. O que está em jogo aqui é a “escala” capitalista. A EAD tem sido agenciada com vistas à escala comercial, e a eliminação do encontro entre pessoas foi relegada, porque é vista como um custo financeiro. Mesmo que as consultorias especializadas promovam esse modelo como eficiente não podemos, enquanto educadores, deixar de denunciar que ele representa apenas um tipo de uso do instrumento, de cariz comercial. A baixa qualidade da EAD não é uma característica intrínseca ao instrumento, mas sim uma consequência do modelo capitalista de escala que foi adotado. 

O mesmo parece estar em vias de ocorrer com a I.A. Seus financiadores estão em busca de lucro, não de uma promoção de práticas e práxis civilizatória. Com base na experiência da EAD e em seu uso escalável, que atende exclusivamente à lógica da financeirização da vida, o “eldorado” em torno das I.A.s segue a mesma linha. Sempre há uma contradição: o uso de uma técnica ou instrumento não é determinado pelo instrumento, mas sim pela forma como é utilizado.  É da esfera da política que certos instrumentos irão ser utilizados de um jeito e não de outro.

É urgente intensificar o debate ético e político na era tecnológica em que vivemos, pois cidadãos alheios a essas discussões acabam excluídos do debate sobre os usos desses instrumentos e, pior, tornam-se vítimas das formas específicas do seu uso. A ausência desse debate é uma das questões mais preocupantes nesse cenário. As I.A.s, afinal, são apenas instrumentos técnicos, com potencial de serem úteis à vida humana.


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