Pandemia e a indiferença

Pandemia e a indiferença

Pandemia e a indiferença com a vida dos outros

Prof. Me. Cídio Lopes de Almeida

Prof. Me. Cídio Lopes de Almeida

LOPES DE ALMEIDA, C. Pandemia e a indiferença com a vida dos outros. AMF3: São Paulo. 2021. Acessível em: https://amf3.com.br/pandemia-e-a-indiferenca 

A Pandemia de Covid-19 tem posto alguns temas. Na verdade, tem explicitado modos de funcionamento do comportamento humano. Para esse texto destaco dois apenas.  O primeiro é a indiferença da classe média, especialmente a fração mais alta desse seguimento, com os demais brasileiros. O segundo tema é o papel do fenômeno religioso em manter grandes porções de brasileiros em situação de empobrecimento linguístico. O que acarreta no caso dos ditos “crentes” um comportamento do enclausurado em desespero.

De um lado temos a classe média. Essa tipificação sociológica leva em conta alguns fatores, mas a referência mais geral são dois. Ser possuidora de capital financeiro acima de um dado volume. Pode ainda ser patrimônio (ativos) ou na forma de capital financeiro capaz de ser introduzido nas dinâmicas financeiras e funcionarem como patrimônio produtivo. Essa classe média tem variações. Pois podemos pensar no pequeno proprietário de um meio produtivo como classe média. Porém, quem exerce papel de controle do Estado são as fatias da classe média mais abastada, daí ser necessário indicar que é a classe média alta e os chamados ricos, que estariam acima da classe média, mas com os mesmos traços. Possuem os meios de produção.

Essa classe media e também a rica são indiferentes às pessoas que não seja do seu circuito pessoal, familiar. Culturalmente no Brasil essa indiferença não consegue se desligar do fator social que nos formou como país. O Brasil é uma nação fundada sobre a colônia de extração (extrativismo) e no uso massivo de trabalho de pessoas escravizadas. Dois traços apenas, mas que estruturam o todo do país, que ainda se fazem presentes na totalidade das instituições entre nós. Incluindo aí as instituições religiosas, nomeadamente os cristãos católicos e as variações do evangelismo.

A indiferença das classes dominantes no surto pandêmico tem sido didática. Elas continuam se fiando na mais secreta fantasia de que haverá “vaga no Einstein ou no Sírio-Libanes”, dois hospitais “boutique” de São Paulo, para onde a elite nacional corre quando sua saúde demanda. E montados nessa certeza, não conseguem pensar o Estado como diferente de uma empresa. Não concebem que o Estado precisa tomar atitudes como tal. Fomentando com dinheiro vivo as “paradas das atividades econômicas” nos grandes centros, como forma de controlar a pandemia. Pensam apenas que seus negócios precisam continuar. E na total indiferença aos trabalhadores, fazem carreatas, aglomeram, clamando pela volta da vida dita normal. Na qual o pobre que não tem acesso ao “Prevent Senior”, outra “boutique” hospitalar, irá certamente contrair o vírus. Deixado à sorte genética, o trabalhador já “precarizado”, com alimentação precária, moradia, transporte, entre outros. Para finalizar o quadro, esse mesmo trabalhador será levado ao sistema de saúde público. Sistema que tem méritos, mas desde muito antes da pandemia tinha sempre problemas de atendimento. A demanda é sempre maior do que a capacidade disponibilizada pelos governantes.

Aqui não é evocar para “le chute de la Bastille” ou um “fuzilamento dos romanov”. A questão é pensar e tornar público a explicitação de traços que “conforma” a ação social na qual se vive. E se espera dessa reflexão, longe de ser algo apartado do real, que a mesma se traduza em políticas públicas. Acredita-se que só dessa forma conseguimos avançar para uma sociedade baseada em justiça social. Fazer valer a “lei do mais forte” não é justiça. Aliás, no primeiro livro da Republica de Platão isso fica patente no clássico livro.

E por isso que vale ainda mais algumas linhas para tratar da indiferença da classe média alta e os ricos. Agora em detalhes mais intimista. Essa indiferença como categoria estética é produzido. Jesse de Souza, uma referência nossa para o tema, tem indicado que desde um modelo de artes, especialmente baseada na ideia kantiana de sublime, que nega o imediato e se apega num espírito estrangeiro, aos detalhes de uma linguagem produzida em “ethos” segregados, a “elite” se matem distante e indiferente. Esse talvez seja o ponto de contato do primeiro tema desse texto com o segundo. A saber a linguagem, pois é a chave para compreendermos que é patente a não-compaixão das elites para com os demais.

O hábito se constrói noutro registro. É algo da esfera dos afetos, do gosto e a linguagem não-discursiva, mas simbólica. Ela é montada no simbolismo. E nessa esfera ocorre de as elites viverem segregadas, com atitudes cotidianas que as apartam dos demais. Na casa da classe média alta a empregada é esse contato demarcador. O motorista, o caseiro da casa de campo ou de praia. É aí que ainda hoje se ritualiza esse não racional, mas simbólico. Sem falar das escolas privadas, onde não se vê preto como professor ou colega de classe, mas nos serviços braçais. A ritualística da segregação vai mais além. Nas lojas de roupas frequentadas pela elite não negro atendendo e apenas o preto como segurança; símbolo de força, de ameaça.

A indiferença das elites ou classe média alta e rica é algo verificável de vários modos. Basta tomar os fenômenos sociais sob a chave que nele não operam apenas um código linguístico. Quando notamos que há o código simbólico, que no geral está na esfera do não-explicito das comunicações, notamos diante dos olhos a ritualística da segregação sendo posta em todos os cantos da cidade. Apontando para a urgência de abordamos com mais frequência em que medida a linguagem simbólica é estrategicamente joga para fora dos debates em política. Ao naquela ingenuidade iluminista-positivista de uma ciência objetiva.

A linguagem e sua variante simbólica é o ponto mais estratégico entre os dois temas aqui proposto. O fenômeno religioso que elegemos para discorrer se liga ao primeiro por ser ele fundamentalmente baseado em linguagem simbólica. No caso em específico do fenômeno cristianismo, a linguagem simbólica perpassa de vários modos. Optamos pelo recorte do cristianismo por ser a religião estruturante do que seja o Brasil. O tema é por demais vasto mesmo nessa apreciação e o mesmo vale para o que salientamos acima. Debater não é para destruir, mas para dialogar e engajar numa convivência melhor. Em épocas de não debate, apontar facetas de algo ao qual não se aprecia tem sido indicativo de inimigo. O que é um retrocesso social.

Se na primeira parte a ideia foi indicar em traços gerais como as elites são indiferentes, nessa parte o foco é notar que entre o trabalhador a religião é uma importante chave de leitura. Como instituição que se coloca na parte mais fundamental do ser social, isto é, no momento em que construímos os valores fundamentais do viver em sociedade.

A religião, especialmente o cristianismo, carrega em si ao menos dois traços. Pode ser “boa nova” (Evangelho) que liberta ou que vela e imprime opressão. No mais, essas é uma característica geral da linguagem humana, revelar e velar.  E essas marcas poderão ser identificadas na linguagem utilizada na economia linguística da comunidade religiosa. Como dito acima, o religioso opera fundamentalmente com símbolos. Como chave de leitura do real, que inclui a si mesmo e tudo em volta.

Nesse quadro temos em nossos dias uma opção por um tipo de cristianismo, como maior incidência nas comunidades ditas evangélicas, que priva seus membros de uma linguagem sobre o real. Em traços gerais, preocupados com o Poder, tais lideres procuram cultivar diariamente um terror linguístico. Dedicam-se longamente à uma teologia do negativo. E tudo passa ser fonte de perdição e “ação do maligno”. E nesse “endemoninhamento” do real vai-se encurtando a realidade desses que cultivam diariamente essa lógica.

Nesse cenário não temos como não lembrar a ideia simples do filósofo-literato Oscar Wilde. Dado um reino, o soberano para dominar seus súditos, retirava de circulação uma palavra por dia. Até deixar o mínimo possível. Com as mídias contemporânea a ficção parece ganhar possibilidades extraordinárias. Se por um lado as mídias já pautam a vida das camadas populares, temos ainda a instituição religiosa agir no sentido de resumir ainda mais esse repertório.

No caso do religioso, como linguagem simbólica capaz de fundar o real, é no mínimo angustiante notar o cultivo do pavor e do medo. O que resulta num repertório muito diminuto de linguagem e mesmo numa dissonância cognitiva fundamental nas mentalidades das pessoas. Em casos mais problemáticos notamos mesmo que beira mesmo a um deslocamento total do que seja o real. E nesse desencontro, na falta de uma linguagem que consiga sintonizar a pessoa com ela mesma, com sua família, com sua comunidade, vemos pessoas totalmente frágeis. Incapazes de planejar a si e sua família. A linguagem como ferramenta é toda perpassada por um cultivo que em nada lhe auxilia.

Ler a Bíblia numa perspectiva libertadora consistiria na grande chave de uma vida melhor. O texto língua, a “boa nova”, como uma chave de ser a si do melhor jeito. Essa é a mensagem enfeixada em Jesus Cristo, o profeta do amor. Não há nada mais acertado do que entender que Jesus empenhou na sua vida “terrena” em difundir uma palavra amorosa.

Enfim, de um lado a linguagem é utilizada parar se manter apartado do outro com o propósito de uma relação semelhante à escravização. Ser indiferente é a fórmula para usar o outro como coisa. Assim procede as elites de um país feito na base da escravização massiva. De outro lado, a religião que pelo discurso do negativo, priva as pessoas de realidade e com isso as tornam frágeis e encurraladas no medo. Todo o real é ruim, logo, devemos nos afastar dele.  E como isso, toda linguagem que fala do real deve ser eliminada. E sem linguagem notamos comunidades inteiras possuídas pelo medo. Contudo, as duas classes sociais, apostas no espectro dos acessos aos bem materiais e culturais, se encontram no ódio. Quando eliminamos uma linguagem ampla do real, seja para esconder o grotesco da escravização, seja com medo do capeta no real, resta viventes sem realidade. Zumbis que se sentem atacados. E só floresce neles o ódio.


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