Diferenças: Síria, de Assad, vive conflito político-ideológico em uma sociedade homogênea; guerra na Bósnia teve raízes etnico-religiosas
Os chamados “pundits” – termo de origem hindu que designa os “analistas” e comentaristas convidados pela mídia anglo-saxã para dar palpites sobre o noticiário – têm um papel estratégico na formação da opinião pública. Legitimados pela imprensa como “especialistas” autorizados a dar palpites com mais propriedade que outros, sentam-se às bancadas de telejornais e assinam colunas nas páginas de opinião para falar do mundo, sob o pretexto da análise e interpretação dos fatos. Mas os pundits não dizem qualquer coisa que pensam. Eles são chamados para dizer aquilo em que os donos da mídia – e seus aliados de classe – já acreditam e com o que concordam, com opiniões que os editores já sabem de antemão quais são. Portanto, toda vez que os pundits começam a falar em uníssono, estão refletindo a posição conjuntural do bloco histórico hegemônico num determinado momento.
E os pundits da mídia britânica e norte-americana, nas últimas semanas, começaram a fazer comparações entre o que está ocorrendo agora na Síria e o que aconteceu em meados dos anos 1990 na Bósnia. Chamam a atenção para um potencial genocídio que possa ser cometido pelas tropas legalistas contra os rebelados de Homs, “a exemplo” do que foi, para eles, a guerra civil de duas décadas atrás na Iugoslávia. Alegam que, se o Ocidente não “aprender as lições” que teve nos Bálcãs durante a violenta desintegração iugoslava, terá fracassado em sua “responsabilidade de proteger”. O fracasso da missão da ONU chefiada pelo ex-secretário-geral Kofi Annan, neste fim de semana, insuflou esse argumento.
Da conservadora revista Foreign Policy ao mais progressista inglês The Independent, passando pelo web-hit Huffington Post, da republicana Arianna Huffington, diversos veículos da imprensa anglo-saxã nos dois lados do oceano fizeram a comparação. O Guardian, o principal título da imprensa britânica fora da égide de Murdoch, deu voz a repórteres na zona de conflito que alardearam o perigo de haver um novo massacre “como o de Srebrenica” em Homs, se “nós tivermos a vergonha de ficarmos sentados assistindo”. No Le Monde, o escritor e ativista de direitos humanos Jonathan Littell desmereceu a ação da ONU na Síria, insinuando que “corredores humanitários” dos capacetes-azuis são fadados ao fracasso, trazendo “lembranças ruins” da Bósnia entre 1993 e 1995, quando “80 mil pessoas foram mortas na frente de jornalistas do mundo inteiro”.
“Alguém, por favor, esqueça a geopolítica, esqueça as reuniões, esqueça tudo isso. Por favor, mandem ajuda. Eles precisam de ajuda. Isso está além das reuniões. Eles precisam que algo aconteça”, disse o fotógrafo Paul Conroy, ferido no mesmo ataque que matou a veterana repórter norte-americana Marie Colvin.
A agência Reuters disseminou o paralelo Síria-Bósnia com uma matéria de Douglas Hamilton que ressalta a “violência aleatória” e a assimetria entre os lados beligerantes em ambos os conflitos. Mas culpa a “relutância do Ocidente” pelos mais de 100 mil mortos no país balcânico, ao longo de três anos de guerra e mais de 100 resoluções do Conselho de Segurança da ONU. O texto praticamente traça um plano de ação, descrevendo que uma operação armada de tropas estrangeiras na Síria deveria ser “protegida por fogo aéreo e com mandato para contra-atacar”, além de ser liderada pela OTAN comandada “por um general muçulmano da Turquia”, país-membro. E Hamilton ainda sugere que a aliança – que já declarou não ter intenção de entrar no conflito – pode mudar de ideia se houver “protestos em massa nas capitais ocidentais exigindo que os governos da OTAN intervenham na Síria”.
Já a revista The Atlantic, conhecida por ser mais “eclética” em seu time de editorialistas, defende que a melhor estratégia para o Ocidente é “armar os rebeldes sírios” (pois eles, “e não tropas estrangeiras, devem liderar a luta”), assim como foi feito para “virar a maré” na Bósnia. Mas, alega a revista, isso não deve ser feito antes de “a oposição se unificar, incluir mais não-sunitas e demonstrar coesão militar”. Até lá, os aliados e a Liga Árabe “devem proceder lentamente”. Salvar vidas humanas fica em segundo plano nessa estratégia.
Efe
Sapatos das vítimas do Massacre de Srebrenica são expostos na Alemanha; após “facilitar” genocódio, país apoia intervenção na Síria
Sapatos das vítimas do Massacre de Srebrenica são expostos na Alemanha; após “facilitar” genocódio, país apoia intervenção na Síria
Até os socialistas ingleses da New Statesman pegaram jacaré na onda intervencionista, levantando a bandeira da “responsabilidade de proteger” (mais um slogan que um conceito, criado pelos ideólogos belicistas das Relações Internacionais) e alegando o fracasso das operações de paz da ONU na Bósnia: “Não podemos copiar esse modelo de mandar tropas para proteger comboios humanitários, simplesmente para alimentar hoje quem será assassinado por um agressor poderoso amanhã”, escreve o autor, John Slinger. Para ele, assim como os sérvios na Bósnia foram vilões de uma “agressão avassaladora”, o regime de Assad está trucidando a oposição, que ele trata pelo reaganiano termo “freedom-fighters”.
Mesmo veículos especializados em Leste Europeu ou Oriente Médio, como a revista Transitions Online e a TV Al-Arabiya, respectivamente, compraram a ideia, mesmo conhecendo a fundo as particularidades de suas regiões. O The National, dos Emirados Árabes, publicou artigo de Michael Young defendendo o envio imediato de armas para qualquer grupo que lute para derrubar o regime sírio. Teria sido isso, alega, “que permitiu aos muçulmanos da Bósnia retomar a iniciativa” contra os combatentes sérvios, “mais bem armados” – apesar de haver um embargo sobre a venda de armas imposto pela ONU, que os EUA optaram por ignorar.
Diferenças estruturais
Tudo faria muito sentido, seria muito nobre e levaria à indubitável conclusão de que é urgente e inexorável que a OTAN erga “da justiça a clava forte” e dê um basta aos desmandos da família Assad… não fosse o fato de que a comparação não procede.
Em primeiro lugar, é preciso entender as diferenças estruturais entre os dois conflitos. A da Bósnia foi uma rara guerra de três lados (sérvios ortodoxos, croatas católicos e sérvios/croatas muçulmanos), com base em linhas divisórias etno-religiosas e travada por disputa de território numa sociedade heterogênea (as fronteiras das repúblicas iugoslavas foram desenhadas por Tito para não coincidir com as populações, de propósito). A Iugoslávia socialista era um regime autoritário, porém com economia de mercado e gestão distribuída (horizontalmente, entre etnias e entre classes).
O caso da Síria é um levante armado num regime também autoritário, mas institucionalmente estável, que manteve o país como uma potência regional (manteve o Líbano sob suas rédeas por 15 anos), contrabalançando o poder de Israel. A natureza do conflito é ideológica, numa sociedade razoavelmente homogênea (ainda que a Síria também tenha grupos minoritários importantes, como os curdos na etnia e os alauítas na religião). Os rebeldes de Homs não querem se separar do país (como os croatas e muçulmanos queriam na Bósnia), mas derrubar o governo para instalar um regime distinto – que pode ser democrático, como se vende na mídia, ou baseado na lei islâmica, como o do Conselho de Transição na Líbia.
A natureza do conflito
O Ocidente “demorou” a intervir na Bósnia porque não havia legitimidade para isso. Esta só foi obtida em 1995, graças à comoção causada pelo massacre de Srebrenica, quando 8.000 muçulmanos foram mortos após a retirada das tropas responsáveis por protegê-los. Na época, quem esteve à frente dos chamados por intervenção foi o senador norte-americano Joe Biden, hoje vice-presidente de Obama. O filme “The Weight of Chains” (em tradução livre, ”O Peso dos Grilhões”) realizado em 2010 na ex-Iugoslávia, por uma equipe de cineastas e produtores de todas as repúblicas do antigo país, mostra bem como se deu o processo e relembra a tese que acusa o ocidente de ter facilitado deliberadamente o massacre de Srebrenica (ao retirar as tropas que faziam a segurança específica do povoado) para criar um evento de comoção junto à opinião pública que justificasse a intervenção.
Os 8.000 mortos de Srebrenica foram vítimas de ódio etno-religioso, alimentado por lideranças locais, que por sua vez eram insufladas por potências estrangeiras (basicamente Alemanha, o Vaticano e a Rússia de Iéltsin) interessadas na criação de uma situação real para reorganizar o equilíbrio geopolítico na Europa após a débâcle do socialismo. Esse ódio não existe na Síria.
O que existe na Síria é a crise de um regime “independente demais”, último bastião de uma vertente do socialismo árabe cujo maior representante tinha sido Saddam Hussein. Embora menos idiossincrático que a Jamahiriya de Muammar Ghaddafi, o baathismo dos Assad é uma ilha secular numa região de fundamentalistas. Por isso, mesmo a alardeada “aliança com o Irã” é circunstancial e não deve salvar o governo de Damasco. Os iranianos têm que guardar seus mísseis para – se chegar – a hora de defender seu próprio país.
O único paralelo possível seria do ponto da vista da decisão de “intervir ou não” que as potências de hoje têm de tomar – e isso, pra elas, independe da natureza do conflito. Quando quer, a OTAN chuta logo a porta perguntando pelos “bad guys”, sem se importar com o fato de serem ou comunistas, ou fundamentalistas, ou mafiosos.
Responsabilidade de proteger
Mas o fato é que o Ocidente não tem pressa de intervir na Síria porque o país não tem petróleo. O combustível fóssil – ou, em termos mais amplos, a “segurança energética” europeia – era o que estava em jogo na Líbia, e foi por isso que os aviões da OTAN nas bases no sul da Itália não demoraram a decolar.
A “responsabilidade de proteger”, defendida pelos intervencionistas, diz respeito a quem – ou, melhor, a o quê? Proteger os civis, como na Líbia, onde o conflito total deixou 30 mil mortos, sendo dois terços civis (só a própria OTAN admite 60 civis mortos em seus bombardeios), e cuja situação atual foi considerada pela Anistia Internacional, em relatório no mês passado, como pior do que antes da intervenção? Ou seria proteger o petróleo, ameaçado por regimes autoritários “independentes” demais para serem confiados?
Uma comparação mais apropriada do caso sírio seria com a Nicarágua dos anos 1970, quando outra dinastia de ditadores estava no poder, também promovendo um massacre socioeconômico contra a população e militar contra seus opositores, também desafiada pela força de guerrilheiros (no caso, os sandinistas) que enfrentavam assimetricamente o exército regular, bem equipado e treinado (no caso, pelos norte-americanos).
Onde estava, então, a “responsabilidade de proteger” as vítimas de repressão dos Somoza na Nicarágua, os fuzilados do Estádio Nacional no Chile e os alvos da guerra suja na Argentina? Era apenas dissuadida pelo jogo de forças na Guerra Fria, em que havia uma outra superpotência militar para contrabalançar o tabuleiro? Ou era porque esses regimes autoritários e sanguinários, no caso latino-americano, eram plenamente confiáveis para Washington?
A farsa e a tragédia
“Esquecer a geopolítica”, como está pedindo a mídia, é esquecer também os limites do direito internacional, os lastros de legitimidade e soberania, a coerência nas ações e, mais importante que tudo, a consideração prévia sobre a real eficácia de uma intervenção armada: ela irá salvar vidas humanas? Ou irá causar ainda mais mortes e instaurar um governo corrupto e fundamentalista,como foi na Líbia?
Argumentam também que o direito internacional deve ser deixado de lado em caso de violação de direitos humanos. Só que o emprego acrítico do tema dos DDHH favorece o status quo da unipolaridade militar, que confere aos Estados Unidos (usando a OTAN como transparente máscara de legitimidade) o papel de polícia do mundo. A diferença fundamental é que a polícia age em cumprimento da lei, sob supervisão da Justiça e chancelada pelo Estado – que tem, de fato, o monopólio do uso da força. Já os EUA e a OTAN agem por conta própria, sem prestação de contas (ou accountability, como gostam de usar no jargão anglo-saxão) a nenhuma entidade supranacional ou universalmente aceita – que realmente não existe, mas de cujo perfil ideal a ONU seria o que mais se aproxima. O poderio militar norte-americano e a aliança atlântica não respondem a ninguém acima de si mesmos, como se pode facilmente verificar lembrando de episódios recentes de intervenções militares sem mandato específico da ONU, como o Iraque, o Kosovo, a Líbia (a resolução falava apenas em “proteção a civis”, jamais em equipar rebeldes nem destroçar a força aérea do país soberano) e… ora, vejam… a Bósnia.
A verdadeira pergunta que se deve fazer é: a quem interessa “embosnizar” a Síria? Quais são os frutos políticos e estratégicos que se pode tirar dessa comparação forçada e que atores do cenário internacional usufruiriam dela? Quem mais lucraria com uma intervenção armada ocidental na Síria, e um possível prolongamento do conflito – ao estilo do Iraque – que causaria muito mais mortes do que poderia poupar?
Aprendemos com Hegel e com Marx que a História só acontece duas vezes: a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa. A Bósnia foi a tragédia. Resta saber o que farão da Síria.
*Petar Orlovic é jornalista, mestre em comunicação e especializado em cobertura internacional e conflitos nos Bálcãs.
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