Em matéria de história é preciso ter muita cautela, pois essa ciência ou modalidade de saber é muito volátil. Quem escreve a história? A história é sempre escrita depois dos fatos? Ou é possível “fazer” história, isto é, é possível agir sobre a realidade já visando construir uma dada cadeia lógica de fatos que será verificada posteriormente?
E aqueles que pagam para construir sua história? Muito comum em épocas passadas, um cidadão que ficou rico fazendo os negócios mais tenebrosos no “novo mundo” voltava com muita grana para a “metrópole”. Lá ele tinha um problema, tinha grana, mas não tinha história descente. O que ele fazia? Pagava alguém para escrever uma história “nobre” sobre seus antepassados.
A história sofreu muito dessa questão e parece-nos que ainda sofre. O que é a biografia de um político, feita por quem ele paga? Os novos ricos da emergente economia brasileira farão o quê para justificar sua pose em Paris? Certamente irão pagar por uma narrativa épica dos seus antepassados.
Contar a própria história pode ser uma procura por si. Coisa natural nos humanos. Ao contar a minha história o que procuro fazer é me definir. Para saber quem eu sou recorro ao meu passado situado no meu presente. As escolhas desses e não daqueles fatos é um exercício de posicionamento no presente. Não posso, por exemplo, selecionar uma narrativa como constitutiva de mim no presente se ela não “bater” com quem eu sou agora. Não admitimos incompatibilidade entre meu atual “ser” e os elementos que me fizeram “vir-a-ser”.
A historicidade obedece a essa regra e não tem como escapar dela. No cuidado de si profissional, isto é, na clínica filosófica, procura-se construir essa historicidade individual sem os erros básicos de omissão. A preocupação em não omitir certos fatos da consciência é por uma questão simples: “corre-se o risco de esconder fatos que agem na surdina e interferem na nossa vida”. No caso da história individual essas descobertas servem para fornecer elementos para a ação da pessoa. A idéia de não omissão é jogar limpo consigo mesmo e tomar consciência de tudo que ocorreu consigo. Afastando as idealizações impostas pelas ideologias vigentes e compreendendo algumas “artimanhas” e necessidade que o “organismo” humano nos impõe.
Ao desvendar essas necessidades humanas, notar que é natural alguns truques da mente, podemos lidar de modo mais honesto conosco. Podemos ser mais “indulgentes” com algumas coisas humanas. Por exemplo, não é natural que nos definimos de modo negativo. Caso alguém faça essa opção podemos notar que o presente dela perde em qualidade de vida humana. Outro exemplo; é natural que não queiramos falar de coisas traumáticas, como a morte de um ente querido, ou alguma coisa que notamos ter sido “uma burrada nossa”. Porém, precisamos encarar essas questões e acomodá-las de modo produtivo na nossa historicidade. Os psicólogos irão falar em “reparação”.
Em termos de história pública, ou seja, a história de um Estado como o Brasil, a forma de contar a história matem algumas características em comum à esfera individual e privada. Como ocorre na história pessoal, não se podem omitir certos dados da história do Brasil sob pena de criarmos “traumas”. Na história pessoal quando omitimos fatos, omissão compreensível do ponto de vista humano, mas não o resolvemos, ocorre que o fato omitido continua atuando em como sou no presente. Precisamos “resolver” para levar uma vida mais saudável. Essa condição pessoal pode ser aplicada na história do próprio país. Quando omitimos fatos históricos como a ditadura, corremos o risco de produzirmos “traumas” na história do país. Precisamos reconhecer e resolver essa etapa da história para levarmos uma vida de “nação” mais democrática, que no caso da vida humana chamamos de “vida mais saudável.”
Não podemos permitir que apenas alguns contem a história da nação, pois ela é composta por milhares. É preciso sempre revelar as questões em jogo, pois a história de uma nação é um projeto coletivo e não apenas dos políticos nos cargos do Estado. Existem fatos permitidos para a vida pública e outros que não. A história não pode ser de um partido político, ela deve romper as particularidades e se inscrever dentro de um conjunto de fato aceitável e que chamaríamos de universal.
O mesmo fenômeno da história ocorre nas instituições. Uma escola ou partido político também precisa saber sua história. A Igreja Católica, a maçonaria, os mórmons, todos tem uma história. Todos, porém, devem tomar cuidado com as armadilhas de contar a sua própria história. É preciso distinguir uma idealização de um fato para com a perspectiva que o coletivo terá sobre esse mesmo fato. Quando tomamos apenas uma “perspectiva” de um fato, corremos o risco de deixar de fora vários outros aspectos sobre o fato.
Para ilustrar o argumento acima, a história dos “cegos indianos” parece-nos interessante. Quatro cegos ao tocar um elefante faziam descrições de como era o animal segundo a parte que ele tocava. Assim, aquele que ficou com a trompa faria sua definição sobre elefantes segundo essa parte do corpo, já o que ficou com a perna teria outra noção. Todos teriam concepções distintas e totalmente dispares do que é um elefante. Porém, ao notarem que estavam descrevendo partes de uma mesma coisa, o animal elefante aparece na sua inteireza. Assim são os fatos que compõe a nossa história pessoal ou da instituição que fazemos parte. É preciso ter em mente que as descrições parciais não podem tomar o lugar do todo; é preciso saber unificar essas partes. A forma de fazer isso é o coletivo ou olhar crítico de profissionais que tem como objeto de trabalho a construção da historicidade do indivíduo ou da instituição.