Debater e dialogar
Breves considerações sobre o ato de debater e dialogar
Prof. Me. Cídio Lopes de Almeida
AMF3 – Escola de Filosofia
Citação:
LOPES DE ALMEIDA, C. Breves considerações sobre o ato de debater e dialogar. AMF3: São Paulo/SP – Bueno Brandão/MG, 2022. Acessível em:https://amf3.com.br/debater-e-dialogar
Introdução
O artigo apresenta o tema da interdição do ato de dialogar ou de debater experimentado em nossos dias. Procura-se partir de ideias comuns a todos nos, como uma certa sensação de que debater seja um tipo de briga, para apontar que podemos avançar noutra direção. Argumentando que dialogar ou debater seja algo vital para nossas vidas, perfazendo desse modo um caminho que desmonte a interdição e ainda indicando por onde começar outra jornada.
- 1.Pra quê debater?
Vamos começar a falar do assunto partindo de hoje para o passado, e com isso fornecer uma boa ideia sobre o que é mesmo debater ou discutir sobre algo. Se consideramos o Brasil, em pleno uso do WhatsApp, algumas palavras nos fazem ter uma ideia rápida. Elas são: debater, discutir, ‘acirrar os ânimos”.
Como chegamos a isso? Em primeiro lugar, porque debater ou mesmo discutir tem contornos negativos? O que nos leva a ter como já dado que uma ‘discussão’ é o mesmo que uma briga? Se dissermos “eu e fulano” discutimos ontem. Alguém logo pergunta, em tom assustado, mas vocês brigaram porque?
Para compreendermos essa realidade imediata de nossos dias, vamos recuar um pouco no pensamento.
O debater ou dialogar não deveriam serem negativos. Vejamos como essa função pode ter surgido em nós humanos. Temos uma função muito importante que é a capacidade de olhar para o que está a nossa volta nesse exato instante e ver não só o que está ali, mas o que poderá vir a estar ali. Dito de outro modo, nós temos a capacidade ou a preocupação de querer saber o que está acontecendo a nossa volta. Esse é um recurso importante para nos proteger. Assim, se ouvimos um barulho, se vemos uma marca no chão, tudo isso pode nos dizer algo para além desse imediato. Saber fazer esse processo, ao longo da história da humanidade, foi um diferencial em manter-se vivo.
Esse processo foi aumentando de complexidade. Chegando ao ponto de conseguirmos “ver” não só que está diante de nossos olhos, mas conseguimos adiantar muitas coisas. Assim, sabemos que numa dada época podemos plantar algo, colher seus frutos e guardar para serem usados noutro momento, que justamente não terá disponível o alimento na natureza. Essa capacidade é tão familiar a nós que até deixamos de percebê-la. Contudo, é justamente essa capacidade que está ligada ao assunto do debater.
A atitude de debater ou dialogar está na origem dessa capacidade de se manter vivo. Imaginemos que ao ver uma marca no chão, a primeira atitude é levantar a cabeça e olhar para os lados. E havendo outro pessoa, logo pergunto, olha qui, você está vendo isso aqui no chão? O que você acha disso? Pronto, começamos a dialogar.
O dialogo, como todas as outras palavras semelhantes (debater, discutir) no fundo é uma função que nos auxilia a “ver” melhor a realidade. É o momento no qual trocamos informações e construímos um “ver” sobre a nossa volta. Dialogar portanto é um “pulo do gato”, isto é, uma vantagem sobre o meio onde estamos, pois alarga e torna seguro o que “estamos” vendo. E por vermos bem o nosso entorno, conseguimos nos locomover nele com segurança.
Aí surge uma pergunta: quem ganharia com o fato das pessoas não desejarem mais “debater”? Quem ganha em associar ao ato de debater uma sensação desagradável, algo que preferimos evitar?
Essa pergunta faz nos lembrar daquelas cenas de algum filme de suspense. Vai tudo indo muito bem, mas do nada algo faz com que o medo se instale em nós espectadores. Para tratar dessa interdição do ato do debater, passemos para o próximo tópico.
2. Não discuto política e religião
A pergunta para essa seção parte também de uma ideia familiar. Estamos vivendo por essa época de pandemia de Covid-19 um desejo de não querer debater. Podemos conversar sobre qual origem dessa sensação, mas parece-nos ser ponto comum o fato de debater é algo a ser evitado. Contudo, como vimos acima, o debater e dialogar é algo muito importante para nós.
Algo portanto pode ter interesse em que pessoas não consigam dialogar. Se remontarmos aos primórdios de nos humanos, podemos ter uma ideia quase de um filme e pensar que um leão tenha interesse nisso, já que esse animal pode comer humanos. Para além dessa imagem caricata, podemos pensar que além dessa vida selvagem, outros humanos seriam esse ‘algo’ que tiraria algum proveito sobre o não posicionamento adequado de outros humanos.
Quando retomamos a história humana, sobretudo a dos últimos 500 anos, logo notaremos que de fato interessa a outros humanos tirar proveito daqueles que não se posicionam adequadamente. Esse tema é debatido por filósofos como Hobbes ou Rousseau e está na pergunta sobre as formas de organização social. Qual seria o melhor modelo?
O debate e o dialogo seriam a base de qualquer que seja o modelo de posicionamento humano. Considerando o modelo de democracia, familiar a nós brasileiros, essa forma só será boa se formos atualizando ela. Não só os programas de celulares ou computadores precisam serem ‘atualizados’, mas as interações sociais precisam fazer o mesmo. Cada humano vivo precisa ir atualizando esse posicionamento, para garantir a si mesmo uma vida segura e saudável. E como ‘baixar essa atualização’ do sistema ‘vida humana’?
Não seria pelos ‘websites’ habituais, mas exclusivamente pelo ‘aplicativo’ chamado dialogo e debate. Desse modo, quando notamos que o debate está interditado, pois não sabemos os motivos só sabemos que não queremos debater, podemos ainda comparar que é como um ‘virus” que se instala de modo escondido em nosso computador e sem percebermos começa a atuar para atrapalhar o bom funcionamento da máquina. Não querer debater é uma parte visível de algo que não vai bem, mesmo que não sabemos explicar os motivos.
Não se situar de modo adequado, só pode servir para que outros tirem proveito disso. Como argumentamos acima, faz parte da vida humana esse se colocar no mundo da melhor forma e que ao fazer esse exercício com outras pessoas, com uma comunidade, temos mais chance de situar-se efetivamente melhor.
E curiosamente podemos dizer que não querer debater ‘política’ ou ‘religião’ é deixar de tocar em assuntos os mais importantes possíveis para esse situar-se na vida. Se simplesmente não conseguimos avançar nesses domínios, se não conseguimos saber por onde começar uma boa conversa sobre a política ou sobre a religião, algo vai muito mau.
3. Gosto mesmo é de discutir sobre o ‘meu’ time de futebol
O texto que oras estais a ler, procura partir de lugares que lhes são familiares. Estabelecendo uma conexão contigo, provocando um diálogo. Por isso agora vem a pergunta, se já sabemos que discutir a política ou a religião tem sido algo interditado, porque motivos nos dedicamos a falar do futebol?
Podemos dizer que existem assuntos que dizem respeitos a várias pessoas, mas outros não. Se temos entre nosso bairro e o resto da cidade uma ponte, podemos pensar que ela é do interesse de todos os moradores do bairro. Porém, se tem uma árvore que está prestes a cair sobre uma casa do bairro, o assunto parece interessar apenas aquela moradia.
Notamos que interditar o debate político e no lugar dele colocar o futebol é inverter a ordem real do que seja o interesse das pessoas. Seria ignorar a ponte e fazer com que a árvore de uma pessoa passasse a ser objeto de ‘discussão’ de todos.
O esporte como exercício humano pode ser visto de duas formas. A primeira como atividade que faz bem físico e espiritual para as pessoas. Por isso falamos que os jovens precisam ter lugares para ‘jogar bola’, ou academias comunitárias, para que as pessoas exercitem-se fisicamente. Porém, o futebol como “entretenimento” é outra coisa. É um negócio que pode ser do interesse de um pequeno grupo de pessoas. Ainda que oferecer ‘entretenimento’ também seja um produto e que tem seu sentido de existir.
Porém, a indústria do entretenimento não poderia assumir o lugar da política. Preferir discutir sobre o futebol enquanto produto de entretenimento e não a política que impacta diretamente a sua vida não pode ser algo normal.
O mesmo pode ser aplicado a religião, se não conseguimos dialogar sobre o assunto, algo errado está posto. Não saber por onde começar e já encarar o dialogo como algo já ruim é o máximo de um problema. Para isso foi incluindo nos sistemas de Ensino Básico do Brasil a disciplina “Ensino Religioso”. Se fizermos a leitura do documento que estrutura o que seja ensinado, chamado Base Nacional Comum Curricular – BNCC, logo vemos que seu fundamento mais geral é promover “o diálogo’ entre as religiões. Outro grande objetivo é criar uma cultura que afaste a intolerância religiosa.
A intolerância religiosa é o exemplo máximo do não saber dialogar. Não saber lidar com o diferente ou mesmo vê nele uma ameaça, é um estágio em que tornamos natural a não conversa com o que seja diferente. Não consigo apenas saber que o diferente nesse caso pode ficar lá e eu aqui.
A história das religiões é bem complexa, talvez seja o assunto que mais gerou guerras ou foi utilizado para fazer guerras.
Para esse texto o importante é sabermos que a religião é algo fundante para o ser humano. Podemos dizer que lá no início da humanidade essa ideia do religioso entrou na composição do humano. Na formação do que seja humano, surge junto do ato de situar-se, pelo dialogo, o fenômeno que ajuda a nós humanos a lidarmos com algumas questões que surgem dessa condição de seres que veem um pouco além do imediato.
A religião será o recurso fundamental para que o homem veja um pouco além do imediato. Dialogar e religião aparecem juntos no processo do humano se organizar e ser feliz.
Portanto, querer falar só de futebol e se fechar para a política e a religião é um processo no mínimo estranho. E consiste numa longa jornada aprender novamente a dialogar. Aprendizado que às vezes tem que lutar com a constante insistência de forças contrárias, sobretudo as que tiram proveito em ter humanos perdidos e sem saberem como se posicionaram adequadamente na vida. Sem saberem como posicionar de forma que a sua própria vida seja feliz.
Conclusão
Nessa série de pílulas a ideia tem sido abrir para uma boa prosa. Tratar da interdição do dialogo, em plena época de instrumentos que viabilizariam justamente uma maior interação, tem sido nossa contribuição para uma vida mais democrática.
Considero que acima foram postas essas chaves, na medida em que indicamos que dialogar é o instrumento pelo qual conseguimos mediar o meu “eu” com o mundo. E que só nessa mediação conseguimos ser humanos propriamente, que nunca estamos prontos, mas que apenas pelo dialogo vamos fazendo a nós mesmos. Sendo a política, baseada em pleno dialogo, e a religião, enquanto resposta fundamental dessa mediação com o mundo, os pontos mais estratégicos para pensarmos uma vida dialogada.
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