Concílio Vaticano II – Dignitatis Humanae e a Questão Maçônica: a Liberdade Religiosa sob Condições
Cídio Lopes de Almeida
[sem revisão por pares]
Doutorando Ciências das Religiões
Faculdade Unida de Vitória
Bolsista FAPES
amf3.com.br
Resumo
Temos por objetivo um comentário em modo de resenha à solta sobre um documento religioso institucional e implicações com a maçonaria. Nosso método é o bibliográfico documental. Nossa hipótese é que o documento do Vaticano II toca em aspectos exteriores, ainda que mais adequado ao aproximar de temas da ética para apreciar a Maçonaria, porém sua apreciação não trata da sua pretensão de dona de uma dada realidade muito menos do tema sobre uma filosofia da natureza como ponto de divergência. O que propriamente, então, precisa ser avançado nesse debate para que ele saia dos preconceitos e avance aos temas cernes dessa peleja histórica? Não esperamos resultados propriamente, mas uma modesta anotação preliminar sobre a questão, a modo de anotações para outros trabalhos elaborados.
1 Comparação entre a referência filosófica da Maçonaria e o documento
A Maçonaria, em sua tradição filosófico-simbólica, valoriza a dignidade humana, a liberdade de consciência e a busca da verdade por meio da razão e do diálogo. Como podemos rapidamente encontrar na literatura feita pelos adeptos maçons, [CASTELLANI, 1981] o caminho do maçom é o da construção interior, pela liberdade de pensar e pela tolerância diante da diversidade religiosa e cultural. Essa postura ressoa com princípios iluministas e humanistas que influenciaram a formação da Ordem.
2 O documento conciliar Dignitatis Humanae
Dignatatis Humanae, ao tratar da liberdade religiosa, também parte do reconhecimento da dignidade da pessoa e de seu direito de não ser coagida em matéria de fé. Porém, estabelece um limite claro: a verdade religiosa é identificada exclusivamente com a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), e a liberdade se entende como meio de que todos, sem coação, possam chegar a ela. Assim, há um ponto de convergência (a defesa da liberdade de consciência), mas também uma diferença estrutural: para a Maçonaria, a busca da verdade é plural e aberta[ainda que restrita na prática à uma cultura Liberal e Ocidental]; para o documento católico, a liberdade é reconhecida, mas ordenada para a única verdade plena presente na Igreja.
Em termos filosóficos, portanto, pode-se dizer que a Maçonaria se alinha mais ao modelo kantiano de autonomia [KANT, 2020] (a razão prática conduz o indivíduo à moralidade pela própria consciência), enquanto Dignitatis Humanae conserva um horizonte teleológico tomista: a liberdade só é plenamente realizada quando ordenada à verdade revelada em Cristo (cf. S. Tomás, Summa Theologica, I-II, q. 91, a. 1, citado no documento).
3 A questão de ser maçom e católico
Historicamente, a ICAR tem reiterado a incompatibilidade entre a condição de católico e a filiação maçônica, sobretudo a partir das condenações de Clemente XII (In Eminenti, 1738) até a declaração da Congregação para a Doutrina da Fé de 1983 (Cardeal Ratzinger), que reafirma que os católicos inscritos em lojas maçônicas estão em “pecado grave” e não podem comungar. O motivo central alegado é a relativização da verdade religiosa e o caráter esotérico e pluralista da Maçonaria, vistos como contrários à fé católica.
Entretanto, Dignitatis Humanae introduz um princípio de diálogo: a dignidade da consciência e o direito à liberdade religiosa. Isso abre espaço para uma reflexão contemporânea sobre o ser simultaneamente católico e maçom. Embora a norma eclesial permaneça restritiva, um resultado possível é pensar a coexistência não como fusão, mas como tensão criativa: o católico que ingressa na Maçonaria deve conciliar duas matrizes que se cruzam na valorização da dignidade, da ética e da busca da verdade, mas divergem quanto à definição última dessa verdade.
Assim, a produção de um resultado não seria a tentativa de harmonização institucional (algo hoje improvável), mas a promoção de um diálogo inter-religioso e inter-filosófico, no qual se reconheça que o ideal maçônico de fraternidade e o ideal cristão de caridade podem gerar frutos sociais comuns, mesmo sem equivalência doutrinal. Nesse ponto, autores como Hans Küng, em sua proposta de uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990), oferecem uma via: encontrar princípios éticos compartilhados que sirvam de ponte entre tradições diversas.
4 Tipos de Documentos da ICAR em que a Maçonaria aparece
Alguns documentos a Maçonaria figura diretamente, outros de modo indireto.
Tipo de Documento | Natureza / Definição | Finalidade Principal | Exemplo | Referência à Maçonaria |
Bula | Documento pontifício solene, selado com bulla. Muito usado até o séc. XIX. | Proclamar decisões importantes (dogmas, condenações, fundações de dioceses). | Clemente XII, In Eminenti (1738) | Primeira condenação oficial à Maçonaria. Proíbe católicos de pertencer às Lojas. |
Encíclica | Carta circular do Papa ao episcopado e fiéis. | Ensinar doutrina, moral e questões sociais. | Leão XIII, Humanum Genus (1884) | Condena a Maçonaria como inimiga da Igreja e promotora do naturalismo e do racionalismo. |
Constituição Apostólica | Documento papal solene com valor jurídico e doutrinário. | Criar normas fundamentais, aprovar códigos, organizar a Igreja. | Bento XV, Providentissima Mater Ecclesia (1917) | Promulgou o Código de 1917, que incluiu a proibição explícita à Maçonaria (cânon 2335). |
Motu Próprio | Documento assinado diretamente pelo Papa. | Normas práticas e disposições disciplinares. | Não há Motu Proprio dedicado à Maçonaria, mas há sobre disciplina de associações. | Pode tratar de temas disciplinares conexos, mas não há condenação específica à Maçonaria em Motu Proprio. |
Exortação Apostólica | Documento papal de caráter pastoral. | Exortar os fiéis à vida cristã e missionária. | Evangelii Nuntiandi (1975), Paulo VI. | Não aborda diretamente a Maçonaria. Normalmente trata de evangelização e pastoral. |
Declaração Conciliar (Declaratio) | Documento conciliar breve e doutrinário. | Definir princípios pastorais e doutrinários. | Concílio Vaticano II, Dignitatis Humanae (1965) | Não menciona a Maçonaria, mas trata da liberdade religiosa, tema que afeta indiretamente a questão das sociedades secretas. |
Decreto Conciliar (Decretum) | Documento conciliar normativo e pastoral. | Regular aspectos da vida e missão da Igreja. | Unitatis Redintegratio (1964), sobre ecumenismo. | Não menciona Maçonaria. Foco em relações entre Igrejas cristãs. |
Constituição Conciliar | Documento mais solene do Concílio Ecumênico. | Definir princípios fundamentais da Igreja e da fé. | Lumen Gentium (1964). | Não menciona Maçonaria. Foco eclesiológico e teológico. |
Código de Direito Canônico | Compilação oficial das leis da Igreja. | Regular juridicamente a vida eclesial. | Código de 1917 (cânon 2335); Código de 1983 (cânon 1374) | Ambos condenam a filiação à Maçonaria. O de 1917 é explícito; o de 1983 fala em associações que “conspiram contra a Igreja”, e foi esclarecido pela CDF (1983) como incluindo a Maçonaria. |
Como não há uma maçonaria, o mesmo fica bem mais complexo de listar no sentido da Maçonaria em relação a ICAR.
5 Anotações e considerações preliminares de uma aproximação
No geral o debate entre Maçonaria e ICAR se dá de forma assimétrica. Por um lago temos uma Instituição Estado que é a ICAR, possuidora de sofisticada infraestrutura de produção de conhecimento. Por outro lado, temos uma associação que é composta por voluntários e por ideologia ou por limitação, não possui infraestruturas de produção e difusão de saberes em pé de igualdade de pessoal e material. Muito da mítica sobre a maçonaria poderosa, aliás, nada mais é que urdido nas fabulações da anti-maçoanria [FERRER BENIMELI, 1996]. A depender de indivíduos formados alhures, como um Jean Théophile Desaguliers [DESAGULIERS, 1734], da boa vontade de alguns aristocratas, ou algum tipo de oligarcas quase ilustrados tropical como Joaquim Gonçaves Ledo (1781-1847) e José Bonifácio de Andrada e Silva (1763 – 1838). Contudo, não foram instituições, mas indivíduos.
Ainda que o tema da liberdade e da verdade tenha passado próximo dos temas propriamente da Maçonaria, mantém-se distante de outra questão fundamental que foram os desdobramentos teóricos de uma ideia de Filosofia da Natureza enquanto verdadeiro núcleo da distinção entre Maçonaria e ICAR. A forma como se encaminha o tema no documento do Vaticano II passou ao largo desse debate. Esses ideais não tematizados no documento conciliar e que foi elaborada entre os séculos XVII – XVIII, e que a título de exemplo podemos listar as ideias de Locke (1632 – 1704), Newton (1642 – 1727), para ficarmos em dois apenas. A depender da definição de natureza, cria-se o ambiente social para que uma instituição assuma o papel de instância legisladora do real, do qual o aparato teológico-político-jurídico da ICAR procura repor de variados modos o seu lugar angular de legisladora de um dado tipo de realidade. Se modificamos essa ideia de natureza, desabilitamos a pretensão de justa mediadora que a ICAR se arvora a tempo. Aí está a verdadeira questão a ser debatida, e por isso que a ideia de uma pluralidade na maçonaria é vista como ponto de distanciamento para a ICAR, o que é de fato lógico segundo seus ditames os quais ela foi parte por milênios.
A forma como se pensa o plural na Maçonaria deriva da Filosofia da Natureza de Newton e outros pensadores em torno dos ideais de uma nova física. Em síntese, Desaguliers, um newtoniano e maçom [DUCHEYNE, 2009], procura traduzir Newton no contexto maçônico propondo uma nova realidade: a concepção de um mundo ordenado, inteligível e sujeito a leis naturais, no qual a autoridade não se impõe por tradição ou dogma [muito menos pela metafísica tomista-aristotélica.], mas pela evidência e pelo raciocínio ou pelo método científico pelo qual a causação das coisas se mostra [sua natureza]. A interdição em causa é que em Desaguliers o homem pode acessar as Leis da Natureza [emulando um Artesão divino] e na ICAR não. O homem não apenas revela as regularidades físicas, mas participa de uma ordem maior, divina e imanente, na qual o divino se manifesta na própria estrutura do cosmos. Nesse sentido, não há ruptura entre Deus e a realidade natural, mas uma compreensão de que a investigação científica é também uma forma de apreender a manifestação racional e divina da realidade. O mistério da maçonaria, por vezes mencionado de modo jocoso nos documentos da ICAR, é o que modula a sua pedagogia, ou, mais correto, a sua mistagogia, que contempla esse mistério que é a percepção de que há uma totalidade como realidade, da qual vamos desvendando pequenas partes. A sua multiplicidade não é um problema, afinal, não só nos escapa a engenharia total da realidade, mas pode-se pensar que a multiplicidade se articula no grande engenho, não sendo possível construtos fora desse grande engendramento. Logo, todo ele é digno de uma consideração solene, respeitosa, pois também faz parte da grande engenharia do Grande Arquiteto do Universo.
Algumas referências bibliográfica
CASTELLANI, José. A Maçonaria e sua Política Secreta. 1. ed. São Paulo: [s.n.], 1981]
DESAGULIERS, John Theophilus. A Course of Experimental Philosophy. Vol. I. Londres: s.n., 1734.
DUCHEYNE, Steffen. The Times and Life of John Th. Desaguliers (1683-1744): Newtonian and Freemason. In: Revue belge de philologie et d’histoire, tome 87, fasc. 2, 2009. pp. 349-363.
FERRER BENIMELI, José Antonio. La masonería española. Madrid: Alianza Editorial, 1996.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento? Trad. Saulo de Freitas Araújo. Estudos Kantianos, v. 8, n. 2, p. 179-189, jul./dez. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/349856079_Resposta_a_pergunta_O_que_e_Esclarecimento. Acesso em: 18 set. 2025.
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