A arte de preencher diários
LOPES DE ALMEIDA, C. A arte de preenhcer diários. São Paulo: AMF3. 2007. Acessado em https://amf3.com.br/arte-de-preencher-diarios
Prof. Me. Cídio Lopes de Almeida
O que está no âmago do preenchedor de diários é o remorso: “Eu não queria ter me tornado nisso”.
O preenchedor se envergonha (em caso negativo, deveria se envergonhar) de sua condição: originalmente, não queria ter se tornado um preenchedor de diários. Mas perdeu a luta, fraquejou, fez uma licenciatura. Não conseguiu realizar seus desejos, que era ser “bacharel”: cedeu, consentiu, desistiu. Reduzido a verme, encontrou conforto no chão: o preenchedor não precisa superar sua condição de fracassado, nem sequer precisa tentar: está assegurado o seu lugar no mercado de trabalho.
O preenchedor é um faxineiro que reduz sua grande ambição ao trabalho de desempoeirar o já preenchido. Mas não consegue se livrar da sujeira: jamais empunha a vassoura, porque tem vocação para o detalhe do preenchido. Sua timidez intelectual o faz trabalhar com pinças, analisando grão por grão, anotando cuidadosamente onde foram encontrados, para onde foram levados… Na verdade, o preenchedor nem sequer tira os divinos grãos de seus lugares sagrados e que preenche: ainda assim espera, curiosamente, limpar as manchas do seu Diário e que orienta sua vida, explicando as visíveis contradições como se fossem apenas aparentes: o preenchedor é um tipo de verniz…
Quando um jovem preenchedor começa a mudar os móveis de lugar, a pisar forte no chão para verificar se realmente é firme, o preenchedor senior se desespera: “Fique quieto!”, grita. É preciso fazer silêncio no “preenchário” (local onde se preenche). Um piso mais forte ameaçaria o frágil chão de madeira, deslocaria os objetos dos devidos locais de preenchimento. “Mas eu não acho isso”, explica a voz tímida do jovem preenchedor: uma idéia própria pulsa em seu interior, tenta se insinuar. “Vá com calma, estude a poeira e o local que ela preenche”, responde a crueldade assassina do inspetor de vírgulas e dos quadros a serem preenchidos: seu intuito é matar o jovem, transformá-lo de educador em preenchedor de diários, assim como em sua juventude também foi submetido, ridicularizado (inclusive por si mesmo), forçado a domar sua originalidade, levado a suspender suas próprias críticas para se ater aos detalhes do preenchimento…aos quadros a serem preenchidos…
Quem precisou desistir de si mesmo para se tornar um mero preenchedor, incentivará sem escrúpulo os outros a seguirem seu sórdido caminho: aumentando o número de fantasmas, o preenchedor espera diluir sua vergonha… Condenará com violência quem tentar impedi-lo, quem tentar dissuadi-lo da religiosa tarefa de arrecadar mais seguidores, quem criticar seu ofício…
Apesar de já estar prestes a me tornar um preenchedor dos mais medíocres e indolentes, estou insatisfeito com minha condição, enojado com o destino que me aguarda: outros, porém, encontra na arte de preencher diário uma tarefa assaz confortável, um labor bastante respeitável. Arrecadar, arrebanhar, mediocrizar… O preenchedor não difere muito do pastor: carrega seu Diário como se fosse um livro sagrado; em vez de pensar, consulta os infindáveis quadros preenchidos: sabem de cor os versículos de sua Bíblia… E as ovelhas se espantam com suas narrativas enciclopédicas…
Além do Diário, o preenchedor carrega consigo uma legião de: introduções didáticas, explicações, discussões, elucidações e ocasionalmente críticas, todas registradas em informações de revistas: o preenchedor é um colecionador compulsivo e medíocre. Coleciona até ficar entupido: até que tenha conhecimentos o suficiente para não precisar pensar. O preenchedor fica se entupindo, impedindo definitivamente que algo de novo encontre caminho para fora de seu cérebro.
O preenchedor se considera erudito. Eu digo: “Submisso!”. Os livros que leu do início ao fim (não por serem agradáveis, mas por serem ‘manuais de preenchimento’, como se fosse indispensável lê-los para se tornar um ser pensante), roubaram um tempo precioso, tempo que poderia ter sido gasto pensando, escrevendo, produzindo algo novo… O preenchedor, em sua fase inicial, nem sempre gosta do que preenche, mas continua (paradoxalmente) preenchendo… Em sua fase final, gosta do que antes lhe pareceria repugnante, conquanto que tenha sido preenchido de acordo a um amado profeta…
A palavra ‘novo’ é repugnante ao preenchedor senior: inspirado em um tipo de atomismo (do qual nem sempre tem consciência), desenvolveu uma sofisticada concepção metafísica minando de maneira aparentemente definitiva e objetiva a criatividade alheia, concepção que em última instância perdoa e justifica seu vazio parasitário. “Não existe nada absolutamente novo”, diz o preenchedor. “Existem apenas re-elaborações, “repreenchimentos”, recombinações, reorganizações do que, no fundo, é antigo”. O novo, assim, parece não ser tão elevado, nem o comentário tão vil e baixo. A partir do fato de que as mesmas sete ou doze notas são usadas para fazer diferentes músicas, o preenchedor conclui que não existem músicas novas: e ainda acredita falaciosamente que a mesma lógica (ou metafísica de um tipo mais ou menos atomista) é aplicável ao caso das idéias, como se fossem constituídas de notas fixas, imperecíveis e impenetráveis… Misteriosamente, o preenchedor aplica sua metafísica apenas para justificar seu desprezo em relação ao novo que surge em sua frente, bem como para justificar sua esterilidade repugnante… Mas quando seu profeta é mencionado, o preenchedor sênior diz: “Ele foi original, o que ele pensou foi novo”. O preenchedor sênior é um imbecil, um carcinoma opressor, que através de sua metafísica professa que é difícil ser criativo, não ser preenchedor de diários, que é difícil pensar algo novo… Com o tempo, abandona seu raciocínio metafísico sobre a contínua “preencheção”, a perpétua imitação de idéias: fica apenas com suas conclusões… O preenchedor abandona seu atomismo? É difícil dizer que o preenchedor abandona alguma idéia própria: não as expõem, não as submete a críticas: não é por raciocínios e argumentos que as abandona: o comentador as ignora. Houve um tempo em que via suas idéias (como a idéia de que não existem idéias originais) como sendo originais, mas nunca chegou a expressá-las, em conseqüência, apodreceram em seu cérebro, (levando-o consigo) gaveta humana de preenchimentos infinitos.
Ninguém deve ter medo de expor seu vazio… Quando insisto na importância de produzir, de escrever, alguns (seguindo internamente o medo e externamente Deleuze) rebatem que é importante reproduzir, preencher, depois criar (que somente um retardado pode querer escrever sem ter antes lido, como disse Deleuze), que eu estou sendo radical e ofensivo, que nem todo mundo dispõe de tempo (ou ainda da menos mencionada capacidade) para inovar… para não ser preenchedor de diários.
A opressora idéia de que é preciso ser diferente ou ter alguma capacidade especial para criar (idéia que parece ser um resquício do gênio, da santidade medieval) precisa ser atacada. Ela parece vir do 2º grau através da figura quase estúpida de tão divina do físico Albert Einstein…
Não é preciso ler para escrever, ao contrário do que pregava Deleuze, um retardado que tentou ler para suplantar sua condição (e fracassou). Não é preciso sequer pensar antes de falar, planejar antes de agir… Aliás, é por acaso preciso pensar antes de pensar? Em caso afirmativo, como se chega a pensar? Em caso negativo, por que não se pode ‘pensar em voz alta’, isto é, falar sem pensar silenciosamente antes?
Outro resquício da Idade das Trevas: a primazia do espiritual, do mental… que se travestiu, com a modernidade, é o surgimento das escolas no local social dos leprosários e manicômios.
“O sábio fala pouco”, murmura o preenchedor em seu íntimo. Correndo como um rato para seus diários, continua timidamente a prece de submissão: “O sábio primeiro preenche/estuda para depois falar”. Como o físico que está começando a entender Einstein e assim se destacando do seu círculo de amigos, o preenchedor começa a se considerar superior quando preenche com rapidez e mecanicidade em estágio de transe…
“O preenchedor, ao contrário do sábio, fala muito”, mas como no caso do sábio, é um vírus que gera paralisia, que incentiva a estagnação, que está na base e no passado remoto do preenchedor.
“O sábio, ao contrário do preenchedor, fala pouco, mas são iguais”. Como, então, descobriram-se que eram sábios?
“O preenchedor fala muito”. Por que não tem nada dizer?
“O sábio fala pouco”. Quem fala isso julga-se o quê?
O preenchedor jamais presta atenção aos raciocínios, aos argumentos… Só existe um sentimento que norteia seu trabalho: o preenchimento do diário.
“Você está sendo radical!”, ponderam os ocos.
Se não for lícito exigir a produção, então não deve ser lícito exigir a reprodução. Se for lícito exigir a reprodução, que seja então exigir a produção!
Mas os ocos querem diluir a fronteira entre a produção e reprodução para legitimar e reafirmar a reprodução, não para assegurar um espaço para a produção. Se não há muita diferença entre produzir e reproduzir, como pretendem os preenchedores reacionários, então não deve haver nenhuma diferença: sendo lícito exigir a reprodução, deve ser também lícito exigir a produção. Para os comentadores, a igualdade apenas favorece um dos lados…
Por um lado, os cães louvam a tarefa do preenchedor como se fosse árdua, difícil. Por outro, rejeitam a obrigação de produzir como se fosse uma tarefa difícil demais, além das possibilidades humanas, além (especialmente) das possibilidades latino-americanas, como se a digna tarefa devesse ser reservada única e exclusivamente ao louvável hemisfério norte… Como se fosse injusto exigir criatividade, mas não a produção em série!
A reprodução, o preenchimento, é estúpida e inútil: os incontáveis diários preenchidos sobre os mesmos assuntos, os intermináveis pontinhos e pontinhos de preenchimentos, estão condenados ao lixo, estão fadados ao mofo. Desperdício de cérebro e papel, desperdício de tinta, desperdício ridículo e cruel: quando insisto na importância de escrever além de reescrever e preencher, os preenchedores rebatem que seu trabalho é honrável, que merece ser respeitado… Mas a honra é uma estupidez e a exigência de respeito é apenas para encobrir o vazio…
Aos preenchedores e seus súditos preenchedores vassalos, aos educadores que já foram educandos, educados, aos que se irritam com minhas investidas contra os preenchimentos torpes: discordam sinceramente de mim? Acham mesmo que repetir é tão interessante quanto criar? Por que reagem com tanta petulância e insolência aos meus apelos? Têm medo de revelar seu vazio?
É para todos que escrevo: para não serem mais oprimidos… Alguns educadores reagem violentamente contra minha defesa da autonomia, da liberdade e da criatividade, contra minha tentativa de assegurar um espaço para a produção além do espaço já bastante sedimentado do preenchimento. Têm tanto medo de revelar seu vazio (foram levados a achar que são vazios) que nem sequer enxergam que estou lutando por sua causa, a seu favor… Escrevo também para os preenchedores de carreira: não quero que sejam simplesmente dados natimortos e jogados no lixo. Quero libertá-los, resgatá-los… Mas se não quiserem, podem ir para o lixo. Ou para o túmulo… Já são fantasmas ambulantes…
A trajetória do preenchedor é a mais vil, a mais trágica, a mais torpe, a mais ridícula possível: o preenchedor é um verme condescendente que privilegia a si em detrimento do outro. Mas houve um tempo em que era humano, um tempo em que tinha vida, em que existia: um tempo passado e longínquo, esquecido, do qual freqüentemente se envergonha… Pois o preenchedor (exceto externamente, isto é, no que tange aos seus conhecimentos sobre preencher) não se desenvolveu: olha para trás e vê um bando de idéias ingênuas, já podres, que ingênuas permaneceram por não terem recebido atenção, por não terem sido expressas: não amadureceram… Simplesmente: apodreceram.
Algumas táticas de opressão usadas com deleite pelos preenchedores: rir do novato, ridicularizar sem argumentos suas idéias, adiar ao máximo a vez do “neo-preenchedor” falar, escamotear seus raciocínios… Houve um tempo em que o preenchedor era humano… Mas em seu caminho surgiu uma pedra, um muro, um infortúnio: um cérebro falso, destruidor e devorador, movido a ácido gástrico, um cérebro medíocre de preenchedor… Cérebro?! O preenchedor não tem cérebro na caixa craniana: tem gavetas, todas vazias esperando para serem preenchidas.
Uma vez massacrado pelo seu mestre, só resta uma alternativa ao jovem aspirante a preenchetista: preencher, seguir os mesmos passos desolados do seu assassino…
Houve um tempo em que o preenchedor era humano… Tornado mestre, porém, começou a achar que preencher era suficiente, que seu posto medíocre era um altar: que não precisava mais pensar, que era ridículo ousar, impossível inovar.
O preenchedor enfrenta um dilema insolúvel, um duplo paradoxo do qual jamais consegue escapar: se escrever algo que não couber nos quadrinhos do diário, estará inventando, delirando, mentindo. Será rejeitado pela comunidade séria (ou seja, estéril) de preenchedores. Mas se conseguir reter seu impulso inovador em nome da fidelidade, seu trabalho terá sido completamente em vão: afinal, o próprio preenchedor já escreveu/preencheu o que é repetido, repreenchido pelo preenchedor…
O preenchedor não é um educador e sim uma mistura infecunda de reacionário, dedo duro, hiena com pedagogo: escreve para facilitar a leitura do outro, para incentivar a submissão… Escreve para não perder o passado de vista, em especial o passado dos vencedores, dos dominadores, para mantê-lo sempre presente e assim atrasar a chegada do futuro, da possibilidade de libertação: o preenchedor é um conservador; elite. Pouco importa se concorda ou não com o conservadorismo: é um conservador. Não inova. Não age. Não produz. E o pior: inibe a produção… Apenas preenche.
Em vez de antecipar, em vez de produzir e gerar o futuro, o preenchedor traz o passado de uma elite dominadora para o presente e leva o presente para o passado: tenta, a todo custo inverter o sentido do tempo com o único propósito de confundir. O conservadorismo está enraizado em seu ser, isto é, em seu vazio, em sua falta de ser: quem não tem ser não consegue preencher o futuro: precisa ser preenchido pelo passado…
“Não estou preso ao paradoxo do estéril pedagogo”, replica o preenchedor. “Não é verdade que sofro com o medo de revelar minha fútil existência, com a agonia de oscilar entre não poder ir além do diário e a inutilidade de simplesmente repetir o que já está escrito”. Sua saída do paradoxo não poderia ser mais vergonhosa, mais estúpida, um sintoma mais marcante sua total esterilidade, de sua total desorientação. O preenchedor é o vácuo perfeito. “Não estou preso ao paradoxo, porque não apenas preencho: também correlaciono os quadrinhos do diário”, explica o preenchedor. Mas sua tarefa não se eleva por causa da correlação: se o preenchedor já estava submisso ao dedicar sua vida a apenas um profeta, torna-se agora duplamente submisso.
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Gostei bastante deste espaço!
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