Resenha
BORGES, Paulo. Vazio e Plenitude ou o Mundo às Avessas: Estudos e Ensaios sobre Espiritualidade, Religião, Diálogo Inter-Religioso e Encontro Trans-Religioso. Lisboa: Âncora Editora, 2018.
Cídio Lopes de Almeida
[sem revisão por pares]
O texto examina profundamente a fenomenologia do desejo e da experiência do Uno em Plotino, um conceito central no neoplatonismo. Explora a natureza da alma e do Uno (frequentemente referido como “Deus” ou “o Bem”) e como a alma o deseja como seu objetivo final. A discussão abrange a processão (como tudo emana do Uno) e a conversão (o retorno a ele), destacando a transcendência inefável do Uno que, embora seja a origem de tudo, está além de qualquer determinação ou pensamento. O texto detalha a jornada da alma através de diferentes níveis de realidade (natureza, alma, inteligência) em busca da unificação extática com o Uno, que é uma experiência interior e direta que transcende a dualidade sujeito-objeto. Finalmente, aborda a metamorfose da consciência e a redescoberta da verdadeira natureza da alma através da remoção de obstáculos e do retorno à sua origem.
Resenha
A obra Vazio e Plenitude ou o Mundo às Avessas: Estudos e Ensaios sobre Espiritualidade, Religião, Diálogo Inter-Religioso e Encontro Trans-Religioso de Paulo Borges, oferece uma análise multifacetada do pensamento de Plotino, centrando-se na fenomenologia do desejo e da experiência do Uno. Para tal, o texto explora a natureza do sujeito (a alma) e do objeto (o Uno), que Plotino por vezes designa como “Deus”. A compreensão desta dinâmica é fundamental para desvendar os conceitos estruturais que alicerçam a filosofia plotiniana.
Um dos pilares conceituais abordados na obra é a tripartição inseparável de processão (proodos), manência (moné) e conversão (epistrophé). Citando Proclo, a obra sublinha que “Todo o efeito permanece na sua causa, procede dela e reverte para ela”. Esta ideia é crucial para entender como todas as coisas derivam do Uno sem que ele se altere, assemelhando-se a uma “vida que se estende em linha reta”, contínua, mas com pontos sucessivos distintos.
O Uno é apresentado como o “princípio de todas as coisas”, do qual “nada” (ούδέν), ou seja, o não-uno, procede. Ele é simultaneamente a absoluta indeterminação e a potência de todas as determinações, o não-ser nada e o poder ser tudo. A obra enfatiza a sua radical inefabilidade e transcendência, sendo “sem forma” (άνείδεον), “não-ser” (μή όν) e “um sem algum” (εν άνευ του τι). Para Plotino, o Uno “não é nada para si mesmo” e o nome que lhe damos é apenas “para os outros”, surgindo da “necessidade de nomear”. Ele está “além da essência”, não sendo objeto de discurso nem de ciência. O Uno é “ato” de autogeração e plenamente autossuficiente, não carecendo de nada. Sua produção de alteridade é fruto de uma “superabundância” ou “irradiação”, que se manifesta sem sua inclinação ou vontade, como a luz que emana do sol. Embora gerador, o Uno “não vive” e “não pensa”, permanecendo acima de tudo, inclusive da Inteligência.
A partir do Uno, a realidade se constitui em múltiplos níveis hierarquizados, que não são estáticos, mas sim “intensidades diferenciais do ser” ou “diferentes planos de realidade”. A obra descreve a seguinte emanação:
Inteligência: É o primeiro a ser gerado, surgindo quando o Uno, em sua perfeição e ausência de necessidade, produz alteridade. A Inteligência é a “visão” que emerge do Uno e “contém todos os seres na sua potência”. Ela é “semelhante ao Uno” e produz a Alma “permanecendo imóvel”. A Inteligência é caracterizada como uma “unidade múltipla”, idêntica aos seus objetos, contendo todas as determinações e inteligências particulares.
Alma: Gerada pela Inteligência, a Alma, por sua vez, “não produz permanecendo imóvel”. Ela progride num “movimento diferente e de sentido inverso” ao da conversão, gerando uma “imagem de si mesma que é a sensação e, nas plantas, a natureza”. A Alma é fundamentalmente “razão e discurso”, desdobrando-se entre o limite superior da inteligência intuitiva e o limite inferior da natureza sensível.
A alma humana é apresentada como aquela que “traz em si a totalidade das possibilidades” e pode percorrer todas as dimensões – natureza, alma, inteligência, Uno. Contudo, a obra de Borges, seguindo Plotino, aborda a “descida” ou “queda” da alma no corpo, que, embora voluntária, a aprisiona na vida sensível, num “túmulo” ou “caverna”. Essa “separação do todo” leva as almas a tornarem-se “fragmentos”, a se isolarem e debilitarem. A alma esquece sua “raça” e “dignidade”, desprezando a si mesma e buscando “seres distintos”. Esta condição resulta na existência de “dois homens” no ser humano: o “homem inteligível” e “um outro homem que quer existir”, em cisão e exterioridade, podendo o segundo eclipsar o primeiro. A obra antecipa conceitos de inconsciente cósmico e individual.
A chave para o regresso à unidade é o desejo (eros) e a experiência do Uno. O desejo pelo Uno é “consubstancial à alma”, uma “vida maior” que a impulsiona desde o “início”. É um desejo espontâneo e constante, que a alma procura “mesmo sem o saber”, implicando uma pertença do que deseja ao desejado. A experiência da presença do Uno manifesta-se como um “choque” que desperta a alma, levando-a a buscar uma união íntima, tal como o amante busca o amado. Esta busca não é apenas intelectual, mas uma “experiência-cume” de unificação trans-intelectiva e direta, considerada mística.
O caminho para essa unificação implica uma conversão da atenção e um esvaziamento da alma. A alma deve “abandonar tudo o resto”, não no sentido de desprezar o exterior, mas de abandonar a ideia de que algo possa existir sem que o Uno seja seu “fundo profundo e íntimo”. É necessário retirar-se do mundo exterior e voltar-se “totalmente para o interior”, banindo todas as formas e determinações, inclusive a de quem contempla, chegando a um estado “sem sujeito nem objeto”. Nesse ponto, a “união” ocorre, e a alma se diviniza, pois “Deus” para Plotino designa “um ser ligado ao centro universal”.
A obra de Borges realça que o Uno não está exteriormente distante, mas é a “natureza última, mais profunda e íntima, o imo, de todo e cada ser e fenômeno”. A aparente separação é apenas um “desvio do olhar” ou da consciência. A experiência de união é indizível e intransferível, razão pela qual Plotino falava de “nada revelar aos não iniciados”. É uma “visão súbita” e repentina, uma imersão na “luz” onde se anula a cisão entre inteligência e objeto pensado.
A obra de Paulo Borges ilumina a complexidade e a coerência do pensamento de Plotino, revelando uma filosofia que vai além da mera especulação, propondo uma ascese espiritual para a transformação da consciência. O objetivo final não é o conhecimento discursivo, mas uma experiência de totalidade, unificação e fruição plena, que transcende as dualidades e revela a onipresença do Uno como a realidade mais íntima de tudo. A “viagem” da alma é um retorno ao seu arquétipo, fechando o ciclo da processão e conversão na eternidade da manência, uma busca não de evasão, mas da verdadeira natureza do ser e do universo. Vale a leitura da obra, da qual essa resenha é apenas uma fotografia em baixa resolução.
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