Salazar e a revolução em Portugal

Salazar e a revolução em Portugal

RESENHA

ELIADE, Mircea. Salazar e a revolução em Portugal. CKE Editions, 1942.

Cídio Lopes de Almeida

Resumo

O livro “Salazar e a revolução em Portugal”, de Mircea Eliade, é uma análise da história política de Portugal desde o século XIX, explorando a transição do país para um regime republicano e as forças políticas que moldaram essa mudança. O texto também explora a ascensão ao poder de Salazar e a implementação do Estado Novo, um regime ditatorial fundamentado em ideais cristãos católico apostólico romano, focando-se nos princípios corporativistas e espirituais que moldaram seu governo.

Resenha: Salazar e a Revolução em Portugal (1942) por Mircea Eliade

O livro “Salazar e a Revolução em Portugal”, de Mircea Eliade, publicado em 1942, apresenta uma análise da história política de Portugal, culminando na ascensão de António de Oliveira Salazar ao poder. Eliade, um estudioso da religião, aborda a trajetória portuguesa com um olhar singular, buscando entender como um país que passou por intensas convulsões políticas e sociais chegou a um modelo de “totalitarismo cristão”.

A obra traça um panorama da história política portuguesa desde o início do século XIX, marcado por guerras civis e a influência de ideologias estrangeiras, como o liberalismo e o socialismo, que, segundo o autor, desestabilizaram as instituições tradicionais do país. Eliade argumenta que a Maçonaria teve um papel importante nesse processo, atuando contra a monarquia, a religião católica e os interesses nacionais.

Eliade dedica um capítulo inteiro a “geração Coimbra“, um grupo de intelectuais que emergiu na segunda metade do século XIX e que teve um papel fundamental na crítica ao regime monárquico e na difusão de ideias republicanas. Figuras como Antero de Quental, Eça de Queiroz e Oliveira Martins são analisadas em detalhe, com destaque para sua influência na transformação da consciência portuguesa.

O autor examina o papel de figuras-chave na ascensão do republicanismo, como António José de Almeida e Afonso Costa, destacando suas habilidades oratórias e políticas. Eliade descreve a crescente instabilidade política que culminou no regicídio de 1908 e na implantação da República.

A instauração da República, contudo, não trouxe a estabilidade desejada, sendo marcada por crises políticas e perseguição religiosa. Eliade analisa a ascensão de Sidónio Pais, figura controversa que tentou estabilizar o regime através de um governo autoritário, mas que acabou assassinado em 1918.

O livro culmina com a ascensão de Salazar ao poder em 1928, contextualizando sua formação intelectual e religiosa. Eliade descreve a infância de Salazar em uma família católica e sua formação no seminário, destacando sua dedicação aos estudos e sua paixão pela educação. A trajetória acadêmica de Salazar é analisada em detalhe, desde seus anos como estudante de Direito em Coimbra até sua atuação como professor de Economia Política, evidenciando sua paixão pelo ensino e sua preocupação com a formação moral dos jovens.

Eliade argumenta que Salazar, como Ministro das Finanças, conseguiu estabilizar a economia portuguesa e implementar um programa de reformas que visava fortalecer o Estado e a moral da nação. O autor apresenta Salazar como um líder pragmático e dedicado ao bem comum, que soube conciliar princípios cristãos com um modelo de governo autoritário.

O livro, contudo, deve ser lido com cautela, considerando o contexto em que foi escrito. Publicado durante a Segunda Guerra Mundial, a obra reflete a simpatia de Eliade por regimes autoritários, como o salazarismo. Eliade apresenta uma visão idealizada de Salazar, ignorando aspectos controversos de seu regime, como a repressão política e a censura.

A bibliografia que acompanha cada capítulo demonstra a preocupação acadêmica da obra. Eliade se baseia em uma ampla gama de fontes, incluindo obras de historiadores portugueses, documentos oficiais e textos de intelectuais da época, o que confere à obra uma base documental sólida. Ademais, mostra uma erudição do poliglota, que dominava algumas línguas, incluindo aí a leitura em portugues. Curioso e algo a ser investigado são os motivos que o levaram a escrever em romeno. Não no seu habitual francês, língua franca e de erudição da época, a qual dominava desde a sua tese de doutorado.

Em suma, para uma visão geral da obra “Salazar e a Revolução em Portugal”pode-se dizer queé uma obra desafiadora, que oferece uma leitura no mínimo instigante, mas que exige um olhar crítico por parte do leitor. A obra é um testemunho de sua época, refletindo as tensões ideológicas e os debates políticos que marcaram o século XX. Eliade como cidadão do Reino da Romênia [monarquia], teve uma experiência específica com o socialismo real, pichado como comunismo pelas ideologias ocidentais. Ademais, ele foi diplomata deste estado monárquico e que nestes anos de 1940 assistiu o fim deste Estado [1947] pela ocupação Soviética e a sublevação dos partidários socialistas romenos.

Uma crítica a obra a luz dos princípios democráticos

Se considerarmos a democracia como valor fundamental e reconhecermos que a ditadura se opõe intrinsecamente à liberdade democrática, a obra de Eliade sobre Salazar se torna alvo de uma crítica contundente. Ademais, resta-nos uma interrogação sobre o conjunto da obra do autor historiador das religiões.

A obra ignora completamente os abusos inerentes a um regime ditatorial, como a repressão política, a censura, a perseguição a opositores, a construção de um campo de concentração na Ilha de Santigado, hoje Cabo Verde, e a supressão de liberdades individuais. O filosofo luso-brasileiro Agostinho da Silva foi preso por alguns dias, para averiguação, e acabou emigrando em função deste contexto. Eliade se concentra em aspectos positivos do governo de Salazar, como a estabilidade econômica e a suposta “paz social”, sem mencionar o custo humano e social da repressão.

Ao defender o conceito detotalitarismo cristão“, Eliade busca legitimar um regime autoritário utilizando a religião como escudo. Essa visão ignora o caráter pluralista da sociedade portuguesa e impõe uma única visão de mundo, deslegitimando qualquer forma de dissidência.

A obra romantiza a figura de Salazar, retratando-o como um líder providencial e desprovido de falhas. Ignora as motivações políticas e o oportunismo por trás das ações de Salazar, transformando-o em um herói nacional e um salvador da pátria.

O livro se baseia em uma visão distorcida da história de Portugal, justificando a ditadura como uma resposta necessária ao caos e à instabilidade. Eliade ignora os avanços sociais e políticos conquistados durante a Primeira República, retratando-a como um período de completa decadência e anarquia, o que não corresponde à realidade histórica.

Eliade demonstra uma profunda incompreensão da democracia, sem descurar que a sua própria experiência pessoal era de estar ligado a uma monarquia, apresentando-a como um sistema fraco e ineficaz. Ele ignora os mecanismos de controle e contrapesos presentes em um regime democrático, argumentando que apenas um governo forte e centralizado seria capaz de garantir a ordem e o progresso.

Ao defender a supressão de partidos políticos e a imposição de um Estado corporativo, Eliade se afasta dos princípios básicos da democracia representativa. Ele propõe um modelo de sociedade hierarquizado e autoritário, onde o indivíduo se subordina ao Estado e as liberdades individuais são suprimidas em nome do bem comum.

A obra de Eliade, portanto, se configura como uma defesa ideológica do regime ditatorial de Salazar, ignorando os seus aspectos negativos e justificando a supressão da liberdade em nome de uma suposta ordem e moralidade. Sob a ótica da democracia, a obra se torna uma apologia ao autoritarismo e uma negação dos valores fundamentais da liberdade individual e da participação política. Ideias que contrastam com uma ideia geral que o autor passa aos estudiosos de religião, que ao considerarem a sua ideia de estudos comparados das religiões pareciam modelar uma ideia cara à esta área de pesquisa que é o respeito da diversidade, a convivência com a diversidade, e que tais traços são apreciados em alta conta em nossos dias como traço das democracias.


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