Uma questão de emprego e desemprego.
O filme de Stéphane Brizé, com Vincent Lindon no papel principal, toca em algo já familiar à filosofia. O tema familiar, mas indigesto, é a multifacetada “micro-física” do poder. Precisamente, o exercício do poder nos detalhes, na incidência sobre atos corriqueiros e cotidianos das pessoas. E se tem um cenário perfeito para se ver essa prática em nossos dias é o desemprego e o mundo do trabalho. Outro contexto para se ver essa cena amplificada, creio ser, o da guerra, mas nesse caso ligamos uma proteção imediata e o mesmo parecer ser algo de um lugar “muito, muito distante”. Logo, o cenário de Brizé nos obriga a continuar com os olhos abertos.
O filme nos permite ver, portanto, como no contexto do mundo do trabalho, ideologias estão a serviço de um estrutura fria e que requer se impor sem ser questionada. O enredo que vai desde o desemprego da personagem principal à sua função de fiscal(segurança) em uma grande loja de varejo, mostra os vários tipos de assédios de poder. E que vou divisar na fase do desemprego e na fase do emprego.
Nessa primeira fase, do desemprego, vemos o lugar comum em que todo desempregado, na sociedade capitalista super-performático, são obrigados a passarem. Todos lhe dizendo que o problema é dele, que ele precisa ser sempre algo que lhe escapa a cada entrevista. Seja o currículo que o mesmo não elaborou corretamente, seja sua postura, seja a nova versão de alguma máquina que lhe escapa. Na sua via “crucis” o desempregado é esvaziado e convidado a “se bricolar”(a se compor segundo as opiniões dos estrategos de plantão) para entrar em um novo emprego.
Finalmente no emprego, ganhando menos e posto no lugar de alguém que está começando do zero, começa nova trama aparente, mas que na verdade é o mesmo “exercício do poder”. Na função de fiscal de um “grands magasins” observamos como a vida das pessoas são esvaziadas e “objetificada”. Como fiscal é preciso encarar a todos como “ladrão” em potencial. Todos são vigiados como se ladrão fossem. E com frequência encontra-se pessoas furtando do grande varejo, máquina impessoal e impiedosa para com os lamentos individualizados. Portanto, não adiante dizer que você “pegou” pela primeira vez ou que foi forçado a furtar porque um traficante do lado de fora lhe obriga. A impessoalidade contamina até a nós espectadores que oscilamos em qual lado ficar diante das justificativas.
A vigília não se restringe aos de fora, aos clientes. Os próprios colegas de trabalho no interior da trama cinematográfica são tratados com o mesmo rigor dos “estranhos” e, para auxiliar na tese de que é preciso tratar a todos como ladrão, são pegos em flagrantes. Não importa que um tenha suicidado após ser pego e demitido; não se quer perguntar e não tem espaço para perguntar sobre a vida privada dele, mesmo com 20 anos de “casa”. Qualquer desculpa é uma profanação da máquina capitalista que precisa fluir sem ser interrompida. Não há espaço para questões, elas são inconcebidas. O lucro, os juros, são entidades mais fortes do que os dogmas medievais da Igreja. Não há vacilo em tomar como natural e necessário os lucros e qualquer tentativa desse ou daquele funcionário “roubar” uns trocados será castigada com a fogueira do desemprego e a não-empregabilidade posterior.
O mercado joga com esse jogo de mostrar e esconder. Ao mesmo tempo que ele, o mercado, precisa da mão de obra para explorar, usurpar dela a vida na forma da mais valia, ele a ameaça de não deixar entrar; deixar de existir no mercado, que é pior do que deixar de existir na vida, no real, pois é uma sub-existência. O expediente da “qualificação” para entrar se revela em farsa, pois o principal é o jogo de controle das mentes e das possibilidades de quem será o usurpador da mais valia, que historicamente tem sido as empresas capitalistas. A falsidade que se revela no mito da qualificação é que o excesso de qualificação também é um problema e pode redundar em desemprego. O chefe não se sentirá à vontade com alguém muito qualificado, mais qualificado que ele. Depois, alguém muito qualificado não ficará nesse emprego, logo irá procurar outro.
Na ficção a personagem simplesmente não terá estômago para tal expediente, demonstrando que não consegue ser indiferente. Revelando um pouco os moldes das tramas francesas ou da ideia que temos de uma França “crítica” e socialista. Porém, se no âmbito da ficção ainda podemos contar com a rebeldia francesa, o que a trama retrata, não sendo nada ficcional, existe em larga escala “dentro do hexágono”(Expressão para se referir à França continental e não aos seus territórios ultramarinos). E esperamos que a coisa que seja possível no mundo ficcional possa um dia se deslocar e ser constrangida na vida prática. Se as histórias medievais, as novelas, aspiravam, para além de mera fuga ficcional, uma nova realidade, que de certo modo um dia tornaram possíveis, esperamos que a crítica apresentada em “O valor de um homem” um dia possa se estender ao mundo nosso de cada dia.
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