Memória e Ancestralidade na Maçonaria: A Importância de Preservar as Falas dos Mestres para as Futuras Gerações
Cídio Lopes de Almeida*
No famoso livro Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, a personagem, Zaratustra, após ter se retirado para as montanhas, decide voltar para o convívio da humanidade para comunicar a ela as suas meditações, pelo que percebe logo de início a necessidade de ter discípulos. O estranho, estampado pela obra ficcional, é que o seu primeiro discípulo era alguém recém falecido. Outra cena que nos permite contextualizar o tema que desejo arrolar nessa resenha é a memória de um Jesus de Nazaré com seus discípulos. A ideia de pensar o tema da ancestralidade na maçonaria parece nos remeter a esse tipo de convivência fraternal, entre mestres e discípulos, por onde a ancestralidade é vivenciada. Na história da Filosofia, Sócrates e seus discípulos Platão e Euclides, para ficar em dois famosos, é outro exemplo emblemático. Como de um mestre ter originado tradições distintas, expressas na filosofia de Platão e no logicismo de Euclides de Mégara.
A relação de ancestralidade estabelecida nas práticas maçônicas se desenvolve entre as diferentes gerações de adeptos. Como é corrente neste circuito, em algumas organizações maçônicas no Brasil a média de idade dos seus adeptos está na casa dos 60 anos. E neste cenário faço a pergunta, o que estou registrando, na minha meia idade, desta geração sênior para transmitir a novas gerações já adeptas ou as que irão surgir?
A pergunta tem sido um guia para me situar nas coisas que faço sobre Maçonaria, que no geral tem pendido para intersecção como minha profissão de professor/ pesquisador em Filosofia, Ciências das Religiões e outras disciplinas das humanidades. Nessa sociabilidade ilustrada/filosófica divisa uma forte oralidade, ainda que possamos encontrar uma expressiva literatura de adeptos, na forma livros impressos, livros virtuais, de informativos, folhetins, revistas e sites. Esse material já existia antes da internet, porém, com uma certa facilidade do mundo digital, eles têm se mantido e até surgidos novos. Como novidade, o circuito de partilha tem sido ampliado pelas facilidades do mundo digital. Há uma sintonia entre os princípios do que seja a Maçonaria, sobretudo enquanto uma Filosofia de Vida, e esta prática de escrita e partilha de ideias. Contudo, o virtual, expresso por vezes nos grupos de WhatsApp, e a própria força na oralidade, nos coloca o desafio de preservar uma certa memória maçônica. Especialmente as amizades fraternas que decorrem dessa convivência dos adeptos. Como fazer a transição de saberes, mais qualitativa, entre as gerações?
Partilhamos muitas mensagens via WhatsApp, temos feito muitas conferências virtuais que têm sido registadas em forma de vídeos e alocadas em plataformas parceiras [youtuber], sem fazermos a pergunta pelos riscos de um apagão dos registos. A identidade maçônica está situada nessa visita semanal à temas, textos, falas, atas, memórias. A escrita e o pensamento intencional sobre ancestralidade podem nos permitir algumas formas mais conscientes de registros.
A pergunta tem-se mostrado a mim em forma de uma epifania. Interrogo não só em relação a esse fenômeno particular da maçonaria. Em retrospectiva, a pergunta também se dirige a toda uma memória com meus mestres nos cursos de Filosofia e Teologia situados na Igreja Católica Apostólica Romana. Em função do que recebi desses mestres, o que tenho repassado?
Hoje mantenho contato com pessoas que vivenciam as práticas maçônicas ao longo de 40 a 50 anos. O que eu irei deixar para a história destes que se dedicaram de corpo e alma a uma coletividade e que essa dialética de consciência inevitavelmente me colocará como observador de um mundo do passado capaz de transferir essa memória novas gerações num futuro? Nessa dialética de consciência vivenciada no presente, vivenciada por mim e pôr esses anciões, minha consciência não só interage. Através do diálogo tenho a oportunidade para um exercício de mim; tenho um lugar entre outros para exprimir-me como homem, pensador, intelectual em ambiente afetuoso, respeitoso. Ser visto como outra consciência com a qual se pode compartilhar ideias, ideais.
Para além de uma ideia de culto personalista, esses indivíduos foram além de uma subjetividade, partilhando a sua persistência em retomar temas, práticas, amizades, fraternidade, da qual hoje faço parte como essa consciência que se vê nessa comunidade. Que por essa troca dialética, sou visto como parte dela, a tomar parte nessa história; indo além da minha própria capacidade para formular racionalmente a minha filiação a este grupo. Em dado momento, salta a minhas pretensões racionais de tudo encapsular numa teia de ideias, e passo a ser visto como um deles.
Por vezes esperamos uma certa acolhida na Ordem. Noutra fase, somos críticos disso ou daquilo, e como conhecemos mais de perto, dissecamos certas práticas, certos estados gerais das práticas maçônicas. Contudo, o processo de uma epifania tem nos levado a outro estágio. Ao estágio de que mesmo nesta dialética de crítica, o fenômeno está posto, se constitui, e estabelecemos laços consistentes de fraternidade. E ao invés de esperar o que este coletivo poderia ser, a pergunta se desloca para o que eu posso ser e compartilhar aos mais jovens? E dentro do princípio liberal, da liberdade de investigação e partilha de ideias, parece-me que há muito espaço para esse exercício de pensamento com o qual me identifico profundamente.
Sócrates nada escreveu, Platão ao rememorar o mestre procurou manter o caráter do diálogo para manter uma proximidade de uma vida vivida e pensada. Os historiadores da filosofia indicam que Platão tinha pretensões teatrais, e que seus diálogos eram esta proximidade com uma peça teatral, como estratégia de manter no registro do pensamento filosófico do mestre uma vivacidade que um texto, mais narrativo e discursivo, perderia. A dinâmica de uma Loja Maçônica me remete muito à experiência não só de Sócrates e Platão, mas, depois, da própria Escola de Platão, conhecida por nós como Academia de Platão. Sem falar de outras experiências entre mestres e discípulos no neoplatonismo entre outros.
Por fim, pensar na ancestralidade é algo para além de acolher os mais velhos. É sobre a qualidade de vida que levamos. O ser não é algo suspenso no ar, no tempo, ele é dialético, relacional. O ser ou o viver uma vida feliz implica numa dialética existencial intergeracional. Não é sobre favor, é sobre existência com qualidade. Não há um eu solitário, egoísta, consumidor. No máximo há uma pessoa adoecida. Ancestralidade não é sobre coisa ultrapassada, é sobre intensidade do viver no presente, que só é possível quando habitamos uma corrente de consciência que só se dá nessa dialética de gerações. Fazer memórias, dialetizar-se com os mais velhos e os mais novos consiste em manter-se saudável e parte de uma força vital que só está no trânsito de consciência intergeracional.
*Doutorando em Ciências das Religiões da Faculdade Unida de Vitória. Membro do Grupo de Pesquisa Cátedra de Teologia Pública (FUV). E-mail: cidioalmeida@gmail.com. Bolsista FAPES
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