As duas palavras soam como deleite aos olhos/mente/ouvido dos bem nascidos. O gozo com certa frequência se estende aos que não tão bem nascidos, mas assíduos espectadores da Globo, alienam-se das próprias condições concretas em que levam a vida e cria um jogo de ilusão por achar que pode pensar “como se” suas condições fossem também as mesmas de um rentista bem nascido.
Essa ilusão de si, esse pensar “como se” fosse doutra realidade, comumente se aplica o termo alienado, pois é como um outro vivesse nele, daí alienar.
Para um certo número daqueles que conseguem articular meia dúzia de ideias e que tenha consciência das suas condições materiais, “Lula Preso” é um duro golpe na utopia. É um ato litúrgico, com toda a força que o rito tem em tornar presente o mito; em fazer reviver um mito.
O mito em questão é a nossa embutida segregação social. O racismo que torna a pele negra como sinal de que você será privado de dignidade. A pela negra é uma referência, pois o racismo se extende para qualquer tonalidade, a paleta é extensa; num pais de “mistura” convenhamos que “preto” é uma categoria mais ampla.
A prisão de Lula é isso, é um golpe de uma classe de pessoas acostumadas com alguns mitos. O mais forte deles é o do mérito. A classe que cultiva o mito do mérito é aquela que fez “ótimas” experiências escolares, certamente tem medalhas de todo tipo. E assim seguiram para a “faculdade”, com mais medalhas e sucessos. No mito do mérito qualquer pequeno burguês coloca para trás Aquiles, o lendário homem-mito da Grécia Antiga. Ele tem uma narrativa de sucesso, aliás, a família dele faz de tudo para que a narrativa se encarne. (Vejamos os livros de Jessé de Souza sobre o tema)
O servos do mito do mérito são adoradores de “fundadores de facebook”. Havard é um dos portais de contato entre o mundo e esse lugar utópico. Na nova “roma” ou nessa “Sion-Jerusalém” a língua não é hebraico, mas inglês. Para esses religiosos, radicais, o pobre é o incapacitado, o que não tem mérito, o fracassado. Passível, de ser exterminado ou usado. Ele “merece” ser nadificado, pois ele tem por objetivo “pegar o meu mérito”. Ele é igual à personagem do filme de terror, “Fred Kruger”, o pobre ataca enquanto você dorme e pega todo o seu mérito. Daí o pânico que os “meritanos” tem dos pobres.
O raciocínio não é novo, no livro “Contra-história do Liberalismo”, Domenico Lossurdo, professor de filosofia italiano, podemos ver esse pânico de um outro humano no contexto dos pensadores do liberalismo anglo-estadunidense. A coisificação de outros humanos foi invenção desses “liberais”; Franklin, Washinton, entre outros, tinha pensamentos execráveis sobre outras pessoas. E tal posicionamento escravista não se restringia apenas aos negros, os servos no contexto da Inglaterra tinha condições inumanas. Os irlandeses, mesmo sendo brancos, sabem muito bem o que é o liberalismo Britânico. Detalhes, podemos verificar no autor citado, que se vale de autores, suas cartas, etc., todos paladinos do modelo anglo-estadunidense.
Prender Lula é trazer esse cenário de 200 anos atrás para nossos dias. É decretar que falamos duas línguas nesse pais; que, como já nos advertiu Henrique Dussel, outro tipo de capeta no código “meritanos”, ao pobre é negado o acesso à língua, pois com isso ele não consegue nem mesmo formular seu “pedido de justiça”. O pobre, segundo a crítica dele à Filosofia da Linguagem de K.O. Appel, não fala, “ruge”.
Os pulos e saltos dos processos que levaram a condenação não só de Lula, mas que prende e tortura a nós “pretos” nas periferias das cidades, comprova isso. Comprova que para atender aos interesses dos bem nascidos, forja-se um novo idioma, um idioma que precisa ter a sua lógica desconhecida dos que irão sofrer a repressão. Não só os sistema judiciário tem seu idioma que excluem, ele próprio, disposto tal como tá, propicia a penalização desse massa de “outros”, de “lulas”.
Prender Lula é impor uma nova gramática. É uma luta simbólica na qual uma classe impôs seu código de dominação sobre as utopias de grandes massas de brasileiros. Não bastasse uma rede de televisão, que já colonizou uma parte significativa de brasileiros pobres, vindo dos mais diversos rincões rurais desse brasil (1960-1980 êxodo rural brasileiro), fez-se necessário golpear de modo mais enfático a subjugação de uma classe sobre os demais. O golpe se fez necessário na medida em que as pessoas e suas realidades duras, pobre, segregadas, iam notando que era preciso ajustar seus pensamentos com essa realidade. O que as levavam a desejar e votar em propostas efetivamente libertadoras.
As peças de propagandas políticas funcionam até certo ponto. Quando elas não mais funcionam, o povo não se deixa mais enganar. Entre o “pobre” da novela e eu, sabemos que há um abismo.
A prisão de Lula pela classe dos advogados, nas suas versões Estado, é exemplar. A partir de um grupo de pessoas, formados em Direito, que conseguem ascender às funções judiciárias. Um incauto, não-bem nascido, dificilmente chega lá, há excessões, mas como tal, não fazem barulho. O grosso desse estamento, procede de uma dada classe média. A que cultiva a religião do mérito; religião que personifica o demônio naqueles que “não tem mérito”. Marilena Chaui, que na linguagem dos pobre-professores é uma professora, mas no código dos “meritanos” é um tipo de diabo, já, como bom diabo, advertia sobre a ideia de que o “capacitado” pode mandar no “incapacitado”. Tipo, ACM Neto lá Bahia dizendo que Gedel Vieira, o gedelzinho preso com aquele monte de grana viva no apartamento, era um homem capacitado para governar a Bahia. O discurso empresarial que já despontava lá nos anos de 1980, em que o executivo hiper-preparado tinha poderes mágicos sobre a “equipe” era um risco. O risco, temos visto, não só na prisão de Lula, mas se espalhando para vários países da América Latina, que no código “meritano”, sempre que ouvem o termos América Latina não perdem a piada em dizer América latrina. Desejo, aliás, verbalizado pelo atual presidente Trump sobre “esses países de merda”.
Enfim, prender Lula é o triunfo de uma classe média facista sobre nós pobres e preta. Que mesmo digitando em um computador Apple, feito por um operário, sempre será categorizado lá, lá entre aqueles desprezíveis; que deve engolir sua história de fracasso; varrer ela para debaixo do tapete. Que terá seu “texto” desqualificado, que terá sua gramática inviabilizada. Que terá mesmo a sua língua física arrancada, para desse modo não dizer: prender Lula é prender nossos sonhos.
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