RESENHA
FLUSSER, Vilém. Gestos. Apresentação de Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2014.
[sem revisão por pares]
Cídio Lopes de Almeida*
A obra apresenta uma exploração multifacetada dos gestos humanos como manifestações do nosso estar no mundo. O autor examina diversos gestos específicos, como fumar cachimbo, pesquisar, pintar, usar vídeo, fazer e escrever, para revelar as intenções, valores e estruturas subjacentes às nossas ações. Através dessa análise, o texto investiga a relação entre liberdade e determinação, a evolução cultural dos gestos e as possíveis crises existenciais refletidas em suas transformações. A obra propõe uma nova abordagem metodológica para compreender a condição humana através da observação e interpretação dos gestos.
Uma Análise da Obra “Gestos” de Vilém Flusser
A vasta e multifacetada obra de Vilém Flusser encontra em “Gestos” um de seus pontos mais emblemáticos. Publicado originalmente em português e posteriormente traduzido para diversas línguas, este livro se debruça sobre a significância dos gestos humanos, revelando um duplo princípio fundamental para a compreensão da filosofia flusseriana. Através de uma análise que oscila entre a erudição filosófica e a acessibilidade ensaística, Flusser propõe uma teoria geral dos gestos que visa desvendar as camadas de significado e liberdade inscritas nas ações humanas mais cotidianas.
A filosofia dos gestos de Flusser se alicerça na premissa de que “toda ação humana implica uma atitude, configurando, portanto, um gesto, e que toda atitude carrega consigo uma mensagem, estabelecendo, assim, uma comunicação”. Essas duas chaves, como metáforas para a compreensão da existência humana, abrem inúmeras possibilidades de análise, desde que utilizadas em conjunto. Longe da rigidez do texto acadêmico clássico, Flusser não hesita em incorporar metáforas e ironias em sua exploração, buscando um caminho que seja tanto rigoroso quanto acessível, uma “Philosophiefiktion” que materializa a comunicação entre a vida e a filosofia através do estudo dos gestos.
Para Flusser, um gesto pode ser considerado um tipo específico de movimento: aquele que não é satisfatoriamente explicável pelas forças externas ou internas ao corpo de maneira isolada. O critério para definir o gesto é epistemológico, demarcando a competência de uma teoria geral dos gestos para movimentos que escapam a explicações puramente mecânicas, fisiológicas, psicológicas ou socioculturais. Paradoxalmente, o gesto é um movimento “demasiadamente bem explicável” em cada uma dessas camadas, mas nenhuma dessas explicações isoladas consegue capturar sua essência. A insatisfação com as explicações causais reside no fato de que elas não atingem a liberdade que se articula no gesto. Assim, Flusser define o gesto como um movimento no qual se anuncia uma liberdade, com o propósito de revelar-se ou ocultar-se para o outro. Essa definição reformulada enfatiza a tarefa decodificadora da teoria, englobando a possibilidade da mentira e o papel do receptor na interpretação.
Na busca por sistematizar a vasta gama de gestos, Flusser propõe algumas classificações provisórias. Sob um critério fenomenológico, distingue entre gestos nos quais se movimentam partes do corpo humano (Tipo A) e gestos nos quais se movimentam outros corpos, denominados “instrumentos” (Tipo B). A distinção metodológica entre o gesto do dedo e o da caneta ilustra a importância de considerar diferentes campos de pesquisa, como a fisiologia e a tecnologia. Sob um critério estrutural, os gestos podem ser classificados como lineares (dirigidos ao outro, contra um material, ou sem rumo) ou circulares (fechados). Flusser ressalta que essas estruturas são construções teóricas, e um gesto concreto pode participar de múltiplas categorias, exigindo uma análise de seus aspectos comunicativo, de trabalho e absurdo.
Um dos gestos analisados com particular interesse é o gesto de pesquisar. Flusser critica a abordagem burguesa da pesquisa, influenciada por Descartes, que busca eliminar a dúvida para cessar a própria busca. Para Flusser, o gesto de buscar não deveria ter como meta o fim da busca em si. A pesquisa burguesa, focada no conhecimento objetivo da natureza inanimada, distancia-se de questões existencialmente relevantes. Flusser argumenta que a busca por um conhecimento puramente objetivo e exato está fadada a se tornar impossível. Ele observa uma “mutação no gesto da pesquisa”, onde o pesquisador se assume inserido na circunstância, buscando valores e sentido em diálogo com outros, em vez de se postar como um sujeito transcendente diante de um objeto inanimado. Essa nova abordagem envolve uma reformulação do conceito de teoria como estratégia de vida e a adoção de uma “mathesis da proxêmica“, focada na proximidade e no tempo vivido.
Flusser também se dedica à análise de “gestos específicos”, como o de “fumar cachimbo”, que ele considera um rito, um gesto que é sua própria finalidade. Apesar de não ser estereotipado no sentido estrito, carrega uma convicção subjetiva de liberdade e uma estrutura aberta. O “gesto de pintar” é examinado como um movimento significativo que aponta para o futuro e revela a liberdade. Flusser critica a visão ocidental que o reduz a um encontro entre pintor e material, propondo uma análise semiológica que decifra o significado do gesto em múltiplos níveis. O gesto de escrever é apresentado não como mera fixação de ideias no papel, mas como um gesto penetrante que realiza o pensamento dentro da estrutura da escrita. A linearidade da escrita moldou o pensamento ocidental, mas as novas tecnologias comunicacionais estão provocando uma mudança nessa estrutura. O gesto de fazer (trabalhar) é descrito como uma tentativa das mãos de imprimir forma sobre o objeto, envolvendo fases de compreensão, avaliação, produção e exposição. Flusser destaca a dialética entre as mãos e a matéria bruta, o surgimento de instrumentos como extensões das mãos, e o sentido último do fazer como engajamento com o outro. Por fim, o gesto destrutivo é analisado não como mera tendência, mas como uma escolha deliberada motivada pela negação de algo, diferenciando-se do trabalho por não propor uma alternativa ao que é negado.
A teoria geral dos gestos proposta por Flusser se configura como uma abordagem interdisciplinar, buscando uma “interface” entre diversas áreas do conhecimento. Ela se define como antiacadêmica, questionando as estruturas científicas institucionalizadas; formal, focando nas expressões da liberdade e não na liberdade em si, configurando-se como uma semiologia; anti-historicista, por analisar microelementos em um espaço-tempo quadridimensional, contrastando com a linearidade temporal da filosofia da história; e anti-ideológica, buscando desvelar as mentiras e pressupostos implícitos nos gestos. Apesar disso, a teoria é engajada, tendo como valor fundamental a promoção de uma liberdade mais ampla e efetiva.
Em suma, “Gestos” de Vilém Flusser representa uma contribuição singular para a filosofia e as ciências humanas. Ao elevar o gesto à categoria de fenômeno central para a compreensão da existência, da comunicação e da cultura, Flusser nos convida a observar o mundo com novos olhos, desvendando as camadas de significado e liberdade inscritas em nossas ações mais basilares. A obra, com sua abordagem inovadora e sua crítica perspicaz das categorias tradicionais do pensamento ocidental, permanece como um texto fundamental para quem busca uma compreensão mais profunda da complexa teia de interações que tecem a vida humana.
* Doutorando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória. Membro dos Grupos de Pesquisa Cátedra de Teologia Pública e Ciências das Religiões(FUV) e Identidade e Sociabilidades Religiosas Contemporâneas [Faculdades EST]. E-mail: cidioalmeida@gmail.com . Bolsista FAPES
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