A filosofia na Lusofonia:
Ponto de Luz,
uma apreciação estética de um poema de
Sara Tavares
A filosofia na Lusofonia:
Ponto de Luz: uma apreciação estética
de um poema de Sara Tavares
Prof. Me. Cídio Lopes de Almeida
Doutorando em Ciências das Religiões,
PPGP – Faculdade Unida de Vitória
Vitória/ES – BR
Introdução.
O presente ensaio tem como desafio de tratar de relacionar um poema da autora Sara Tavares com alguns temas da filosofia. O exercício de caráter ensaístico perspectiva um primeiro movimento de tornar público, sobretudo entre leitores e amigos, ideias que em momento futuro pretendemos desenvolver num registro propriamente acadêmico. Noutro momento, em especial nas minhas investigações sobre poesia e filosofia, planearei um artigo, aí mais articulado segundo os parâmetros escolares. Aqui, nos interessa verificar a hipótese se na lusofonia a filosofia é vivida e suas marcas são deixadas em múltiplos registros, nomeadamente no campo da estética e, sobretudo, na poesia, que no geral depois desdobra-se em musicalização.
1. O contexto na filosofia
Benedito Nunes e Michele Foucault, em contextos bem diversos, em dado momento das suas atividades de filósofos, marcaram a história do pensamento filosófico com suas apreciações estética sobre alguma obra de arte.
Foucault com sua ampla análise “das Meninas” de Velasquez. Benedito Nunes, um dos vultos do platonismo na Lusofonia, com sua celebre análise da poesia de Clarice Lispector. Evocar os dois exemplos nessa abertura se dá no sentido de expressar um contexto geral da nossa empreitada, isto é, nós da filosofia temos nesses registros material “concreto” do nosso trabalho de pesquisa.
A concretude desse real, que é objeto do filosofar, se dá preferencialmente na esfera da cultura humana nas suas várias latitudes. Da gastronomia, da agricultura, da religiosidade, das histórias espontâneas e populares, tudo pode ser objeto da filosofia na medida em que nada dos tópicos acima citados está fora da criação cultural das pessoas, das comunidades, da lusofonia em sua bela e complexa multiplicidade. E por ser criação humana, se inscreve fortemente na nossa capacidade de apreciar e aferir valor para tudo. Se desde Aristóteles nos esforçamos noutra perspectiva, de separar o que é valorativo e contingente, do que seja objetivo e necessário, notamos, como Nietzsche nos propõe na abertura da sua obra O nascimento da Tragédia, que, por outro lado, é o valorativo que nos corta de leste a oeste; do céu à terra. Somos seres, fundamentalmente, que produzem valor como forma de nos engajarmos no cultivo de tudo que é feito pelo humano.
Posto esse quadro mais geral, encaminhamos para pensar o caso aqui eleito. Um poema de Sara Tavares, a cantora luso-caboverdiana. Sinalizo que essa escolha tem dois motivos. O primeiro é estético, pura singularidade, pura “afecção”, naquele quadro que Espinosa nos evoca ser necessário perpassar os pensamentos – para que os mesmos não sejam fantasmas. O segundo motivo, já acadêmico, se enquadra no meu interesse pela filosofia na lusofonia. E minha desconfiança, junto com Agostinho da Silva – Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, de que os aspectos próximos à vida tenham nos levado, a nós da vasta lusofonia, a preferir mais “ser um poema” do que escrever um.
Esse preâmbulo já se estende, mas é importante sinalizar mais dois pontos. O primeiro, ainda na esfera do contexto filosófico que irei aprecia-lo, é aquele achado de Adorno no contexto da Escola de Frankfurt. Após pesquisas de “opinião” no contexto de fábricas – Mercedes-Bez, foi percebido que a melhor forma ou chave de leitura para acessar uma cultura seria a literatura. O que nos põe em cheio no tema na forma como pensamos no desenvolvimento humano, no mundo dos estetas e a certa distância dos tecnocratas. O segundo, é que minhas modestas garatujas não ensejam dizer do poema ou da poetiza. Não se trata de modéstia, trata-se da exigência da filosofia em não distorcer os objetos das suas disposições topográficas. Falarei unicamente de mim, descaradamente não consigo falar de outra coisa nesse momento. Como dissertamos em Estética e Educação em Nietzsche, o que nos move é “dionísio” e ele está a solta em mim.
O ponto central: Ponto de Luz – Sara Tavares
“Escutando no vento
Tua voz secreta
Que me sopra por dentro
Deixe-me ser só ser
No teu colo eu me entrego
Para que me nutras
E me envolvas
Deixa-me ser só ser
Um ponto de luz
Que me seduz
Aceso na alma
Um ponto de luz
Que me conduz
Aceso na alma
Por trás dessa nuvem
Ardendo no céu
O fogo do sol rai
Eternamente quente
Liberta-me a mente
Liberta-me a mente
Um ponto de luz
Que me seduz
Aceso na alma
Um ponto de luz
Que me seduz
Aceso na alma”
2. Apreciação subjetiva das ressonâncias estéticas de Ponto de Luz
2.1. Estrutura geral da música e videoclipe.
O impacto de ouvir o poema na forma de música e videoclipe, indicado pela amiga Prof. Teresa Matos, deixou-me tão marcado, que logo lembrei-me de Nietzsche, quando o mesmo entrou em contato com a música de Wagner. E que o mesmo procurou dizer que essa força está na capacidade do som, em especial na forma de música, em nos colocar como seres vivos o mais próximo da Vontade.
O conceito de Vontade, oriundo de Schopenhauer, nos diz que tudo no real é força, no sentido estudado pela física. A vontade como desejo não passa de uma faceta dessa Vontade, que vai do cósmico e se espraia na moral, etc.
A música por ter essa proximidade “material” ou puramente energética com o núcleo do real, pois se trata de fluxos de ondas, nos aproxima do que seja de fato o real; do que de fato constrói os demais inventos humanos, nomeadamente a totalidade da linguagem e as subsequentes criações.
Quando tomamos esse quadro, não nos deixa passar desapercebido na sonoridade de abertura da música em questão (0’:38” – 0’:45”) a sonoridade de flauta, o sopro como destaque nesses primeiros instantes, que ecoam fortemente em nosso peito. Preparando o restante da música para um constante alento.
A cor sépia (marrom) que perpassa por todo o clipe nos remete para duas questões. A mais explicita conecta-se com a poética que nos indica a luz como “ponto” a ser seguido. Uma segunda, o tom sépia reproduz uma cor “morna”. A cor marrom destaca a luz e a terra, produzindo um acolhimento descomunal. Dando sequência à sonoridade que ecoa no peito e assim será todo o clipe musical. Para arrematar esses aspectos visuais e sonoros, a técnica de “stop motion”, utilizada para dar movimentos nas imagens do videoclipe, constrói uma experiência de individualidade. Os movimentos frenéticos ao lado da cantora e personagem no vídeo, e seus movimentos noutra velocidade, produz a percepção de isolamento; uma acentuação da individualidade e mesmo de uma subjetividade, que nos são induzidas pela frequente aparição com os olhos fechados.
A cor marrom teria outro aspecto que procurarei explorar noutro momento, aqui indico apenas que se relaciona com seu aspecto puramente físico, seu comprimento de onda, e como ele se comporta no glóbulo ocular. Em linhas gerais, tal cumprimento de fato produz certa experiência agradável na percepção da luz.
Num arremate, minha experiência subjetiva e puramente sem conceito do conjunto da música é o de uma profunda acolhida; por instantes, um desligar-se de toda exterioridade ameaçadora.
2.2. O texto do poema
Não irei fazer uma análise gramatical, mas uma deliberada interação do poético com o filosófico. De modo deliberado, não procuro expor uma verdade por trás, que o autor procurou codificar sua verdade, que só será acessível aos doutos das letras. Será puro pretexto, será o domínio do “leitor” receptor. O quer irá gerar necessariamente outro texto, podendo apenas tocar aqui acolá uma possível semântica preterida nas letras do poema.
“Escutando no vento
Tua voz secreta
Que me sopra por dentro
Deixe-me ser só ser”
O vento na letra se coaduna com o sopro produzido logo na abertura da melodia. De modo que letra e som tentam, em domínios distintos do estético, produzir o efeito de nos arrancar do exterior e nos forçar, docemente, a ater-nos no nosso dentro; subjetivo, nosso singular. Esse raciocínio parece-nos ficar patente na medida em que “deixe-me ser só ser” reforça o desejo de uma singularidade em abster-se de qualquer interpelação da sua exterioridade. E nesse sentido, “escutando no vento, tua voz secreta, que me sopra por dentro” é lapidar no encaminhar e conduzir para dentro. De um sopro, que nos remete em cheio à nossa tradição cristã, daquele arquétipo do criador que dá vida ao soprar num ‘barro’, agora vivo, e para o qual lhe dá uma “mensagem secreta” indicando a mais secreta ideia de que sim, há uma singularidade.
No teu colo eu me entrego
Para que me nutras
E me envolvas
Deixa-me ser só ser
Numa figura de criador, que ressoa estruturante na primeira estrofe, sendo arrematada no último verso, “deixa-me ser só ser”, passamos declaradamente para “no teu colo eu me entrego, para que me nutras”, não deixando dúvidas de que se trata de uma totalidade que seja capaz de receber, acolher o ser. Compondo-se com aquela “capacidade” de que Platão atribui a Kora, esse espaço que permite outros “seres” serem. Ou ainda, na própria metáfora de Platão, “como se fosse um útero” que permite outro ser, nutrindo-o; mas sem interferir nessa sua autonomia em ser.
Um ponto de luz
Que me seduz
Aceso na alma
Um ponto de luz
Que me conduz
Aceso na alma
Esse ser reconectado a si mesmo, ciente de si, encontra em si uma “luz” que o evoca, o seduz, e é de dentro; algo como as ideias seminais dos estoicos, especialmente os primeiros estoicos, ou a clássica ideia contida na Alegoria da Caverna Platão, que é “Eros”, esse deus filho de Caos, quem, de dentro da alma, provoca o morador da caverna a retirar-se daquele estado; dizendo, como que numa voz secreta, bem dentro da alma, que algo lhe falta e ele deve seguir a luz, pois, só lá fora está o verdadeiro. O ser propriamente está lá fora e lhe falta. O aparente acomodar-se, e não seguir a luz, próprio do estado de alienação de si, do estar fora de si; que foi muito bem tratado na primeira estrofe, através de um convite a estar consigo, a querer sentir-se ao ponto de deixar tudo lá fora para estar consigo, agora é irrompido com uma “Luz” que surge e seduz, convida, provoca a ser seguida.
Não consigo parar de pensar que se trata desse movimento próprio das místicas. Que precisa sair das superfícies alienantes do “ser-aí”, do desterro, atropelado por uma angústia monstruosa; e que agora volta-se a si; e em si sente um cerne da vida; aquilo que Espinosa dirá ser o notar em si as marcas de uma totalidade e que naturalmente fluímos para ela.
Por trás dessa nuvem
Ardendo no céu
O fogo do sol rai
Eternamente quente
Liberta-me a mente
Liberta-me a mente
Nesse encadeamento, dessa totalidade que nos seduz, “por trás dessa nuvem” nada mais apropriado para as imagens que a mente produz, verdadeiras nuvens a esconder que “Ardendo no céu; O fogo do sol rai. Eternamente quente”. Aqui a correlação que desejo fazer é a seguinte. Para Espinosa, o indivíduo se vê na seguinte situação. Sua mente produz pensamentos fantasmagóricos, que só estão na sua mente. Tais produções mentais carecem de possuir realidades, são apenas fantasmas. Porém, o que importa são os vínculos que se produzem conectados com o real enquanto aquilo que está fora dos fantasmas produzidos pela própria mente humana. Nesse sentido, o indivíduo ao notar que o que importa está por trás das “nuvens” de fantasmas, deseja intensamente que a sua mente se conecte com esse “fogo que está por detrás das nuvens”. E o que ele mais quer é que “Liberta-me a mente”.
Lembro-me vivamente que para Espinosa, na sua Ética à maneira dos Geômetras, o primeiro estágio do conhecimento produz fantasmas na mente; e que ao percebê-los como tal, se deseja deslocar para o segundo gênero, que é o científico; mas, como uma necessidade humana de sentido, o grande conhecimento é de fato o do terceiro gênero, que é o místico teológico. E que de certo modo ele produz justamente essa liberação da mente; sem pensamento; um estado místico. Sem mente.
Um ponto de luz
Que me seduz
Aceso na alma
Um ponto de luz
Que me seduz
Aceso na alma
No computo geral, e retocada com a repetição das duas estrofes acima, a sensação mais patente é que somos levados docemente de uma singularidade autêntica a uma totalidade plena de si. É um puro lançar numa totalidade de maneira extremamente amável, agradável.
A morna, o morno que perpassa tudo nesse poema cantado, avoluma dentro de si que não é possível sentir um desterro do existencialismo. O contato concreto ou energético com um momento propiciado por essa obra de arte, rasga o logos da sua mediocridade, atropela a pretensão de que “saímos de um nada” e somos condenado a construir tudo.
Para finalizar, a música não se encerra no poema acima. Consta de uma declamação poética em criolo cabo-verdiano, a qual não aparece na letra da música. Essa ausência definitivamente não foi uma displicência, mas faz parte da arquitetônica da música e poesia. O inefável, o místico, o segrego da vida, que nos move, é sempre um deslizar, um a-racional e que se coloca nas franjas da razão. Ficar fora da letra, me parece ser a própria essência da letra, que sinaliza a todo tempo para um sentido existencial sempre total.
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