(Evento gratuito de Filosofia como exercício. https://eventioz.com.br/e/filosofia-como-exercicio )
Filosofia
Em épocas de super-performances dos profissionais ligados à administração ou às finanças, meio no qual se multiplicam novas terminologias, falar de qualquer outro assunto nos põe desafios. O principal e de imediato é provar capaz e à altura de ser um tema relevante. O lugar que os temas da economia ocupam tem dimensões que podemos chamar de estelar. Contexto no qual os demais temas são ofuscados, chegando mesmo ao efeito de serem apagados pelo brilho da estrela dominante.
Desse modo, para começar a falar de Filosofia e da sua pertinência, faz se necessário um tipo de discurso de apresentação que, basicamente, coleciona argumentos sobre tal pertinência não só da Filosofia, mas de como ela pode interessar a vários tipos de pessoas. Por quais motivos alguém se daria ao trabalho de se ocupar desse tema que nem mesmo se apresenta no horizonte de cada dia.
Antes de qualquer coisa, pensamos que tal cenário não é um anacronismo dos nossos dias. Não se trata do fim dos tempos, no qual a Filosofia será preterida. Muito menos que uma “cultura” desprezível é que tem lugar em uma sociedade corrompida ou, que se trata de um problema dos trópicos. Para além de toda possibilidade fatalista pensamos que é corrente que cada época tenha seus horizontes, seus temas centrais e que não só a filosofia, mas até mesmo as artes, sempre foram discursos que ocuparam apenas pequenas parcelas das sociedades. Depois, sempre foi muito salutar que houvessem vários temas que compunham as sociedades ou mesmo que temas ligados à “infraestrutra” (Direito e economia) sempre tivessem seu lugar central. Parece-nos o mais ordinário, considerando que a base material (sem aqui evocar Marx e tudo o que liga o tema a ele) é fundamental para as demais necessidades humanas.
Partimos, portanto, de um contexto otimista para “vender” Filosofia. E uma das estratégias habituais é apresentar o “produto” Filosofia lançando mãos de inferências conceituais. Por inferência conceitual podemos dizer que é a técnica de dizer sobre algo apresentando o que ele é e o que não é. Para além do trocadilho de palavra, queremos dizer que em Filosofia podemos dizer dela utilizando a estratégia de dizer não só o que é, mas avisando o que ela não é. Tal modalidade que soaria muito estranha às técnicas processuais, na qual um advogado não se daria ao trabalho de falar dos pontos contrários à sua tese, em Filosofia, como nas demais atividades de pesquisa acadêmica, parece ser comum.
A pergunta básica, que soa como mantra para qualquer professor de Filosofia, é pela própria natureza do que seja a Filosofia. Para início de exposição podemos dizer que é uma longa tradição de produção de conhecimento e que tem o mesmo status de qualquer curso superior, ao lado de Direito, Arquitetura, entre outros. Sinalizamos ainda nesse esboço inicial que tal “curso” tem ao menos 2500 anos de história.
Em geral tal resposta não satisfaz quem nos indaga e o próximo passo é querer saber o que faz tal profissão. E se “digitarmos” no google a miríade de possíveis respostas não nos levara muito longe. A título de resposta rápida podemos dizer que tal profissional atua como professor dessa disciplina em “colégios” e faculdades. O que leva nosso interlocutor, sobretudo o adulto, a verificar certo esvaziamento de sentido em uma profissão que circula nela mesma sem uma saída para a vida “prática”. E desse modo se fecha o circuito que inscreve tal saber na categoria de não existente.
Porém quero romper esse tipo de pensamento e para tal utilizo uma metáfora. Como a palavra circuito nos remete à coisas eletrônicas(digitais) aviso que pensar dessa forma em Filosofia pode ser sintoma de que estamos pensando por “curto-circuito”. Encontrei essa metáfora em um artigo de José Fernandes Weber, no livro Formação (bildung), educação e experimentação em Nietzsche, e sua alusão tratava de salientar o risco que é pensar rápido sobre os mais variados assuntos. No caso dele sobre Nietzsche, no nosso sobre a própria filosofia.
A primeira postura para sair do curto-circuito é desconfiar, no estilo de Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa.(2001, p 31) E é preciso ter aquela habilidade que a própria personagem diz ter diante das ideias:
“O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou eu mesmo. Divêrjo de todo mundo… Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! (2001, p. 31).”
Da personagem de Guimarães Rosa quero tomar apenas essa ideia de gosto pelo pensar e desse estado de “desconfiança” diante os saberes. Posição que nos parece muito pertinente por não ser algo fechado. Sobre o qual já tenhamos opinião e pronto. Mesmo que precisamos de várias certezas e vida adulta nos diz isso, ter desconfianças é um bom estado, um estado alerta. No nosso caso é uma desconfiança pedagógica, não se pretende advogar a suspensão das certezas constitutivas de nossa identidade, mas apenas que há saberes sobre os quais podemos podemos ter ideias que não consigam efetivamente descrevê-los em suas riquesas.
Assim, podemos apresentar a filosofia para além de um conteúdo apenas aplicável à escola. E que a utilidade é quase restrita aos exercícios escolares. A Filosofia como um exercício de vida amplia tal ideia. Porém, ela ainda não será apresentado como um “produto”ou um “serviço”. Enquanto exercício ela precisa estar fora de tais regras, pois se virar serviço ou produto corre-se o risco tornar-se uma ideologia.
A filosofia como exercício não é uma religião ou uma escola na qual tem um “mestre” que orienta seus discípulos. Exercitar filosoficamente não é se submeter à um guru ou a princípios já prontos e acabados; sempre na posse de um “mestre” que irá lhe ministrar tais “sabedorias”.
Exercitar filosoficamente nos remete a Riobaldo na medida em que o professor é apenas aquele que “solta as ideias na frente dos seus companheiros de viagem”. Cada um é que decide se vai atrás ou não e como o fará. Esse aspecto da Filosofia como exercício de vida pode soar como mais uma “iguaria” “alternativa”, na qual o cliente de classe média confunde tudo com um SPA cinco estrelas. Porém, pensamos o contrário, pois o tema da liberdade e uma sociedade baseada na liberdade implica algumas apostas. Não se impõe a liberdade, a liberdade precisa ser assumida por todos e é preciso ser fruto da iniciativa de cada um. Resta-nos a militância, sem imposição, de que a liberdade é interessante para um sistema social justo. Que ela não é um produto ou serviço, mas um exercício pessoal e que é complexa; não dá para “curtir” ou “adicionar” tais práticas na sociedade.
No contexto acima é que Filosofia enquanto exercício nos permite deslocar tal saber das explicações mais rápidas que demos no início. Se hoje a própria ideia de Filosofia como mera disciplina acadêmica tem muito força, nem sempre foi assim. Segundo Pierre Hadot podemos pensar em outra história e ela é repleta de conteúdo.
A título de uma menção rápida, entre as escolas filosóficas da Grécia Clássica (séc. V a.C) e mesmo nos primeiros séculos da cristandade, as escolas filosóficas eram concebidas como lugar de exercícios. Mesmo havendo distinção entre elas, sendo uma favorável do prazer ou da ascese, etc., o ponto comum, segundo Hadot, era a Filosofia como uma prática.
O assunto é complexo em nosso dias, pois qualquer “filosofia de vida” nos parece ser uma moda muito cosmética. E o que vale são os aparatos técnicos que criamos e como consequência os saberes que servem a tal propósito.
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