Do Silêncio

Do Silêncio

Resenha

LE BRETON, David. Do Silêncio. Tradução de Luís M. Couceiro Feio. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

 

Cídio Lopes de Almeida

[book summary for teaching purposes]

 

Resenha do livro “Do Silêncio” de David Le Breton, traduzida para o português por Luís M. Couceiro Feio e publicada pelo Instituto Piaget em 1997. O livro explora as múltiplas dimensões do silêncio, contrastando-o com a fala e o ruído em diversos contextos. O autor examina o silêncio como um fenômeno cultural e social, discutindo seus hábitos em diferentes grupos e seu papel na comunicação interpessoal, onde pode indicar cumplicidade, mal-estar ou até ser uma forma de defesa. Além disso, a obra aborda a relação do silêncio com o sagrado e a espiritualidade, detalhando disciplinas monásticas e experiências místicas, e considera o silêncio no contexto do segredo, da morte e do luto, revelando-o como um tema de profunda complexidade humana.

 

Anotações panorâmicas da obra

A obra Do Silêncio, de David Le Breton, doutor em Antropologia e professor na Universidade de Estrasburgo, apresenta uma profunda reflexão sobre o estatuto e as múltiplas manifestações do silêncio na sociedade e na experiência humana. Publicada originalmente em francês em 1997 e traduzida para o português por Luís M. Couceiro Feio, a obra é uma crítica incisiva à “utopia da comunicação” moderna, que elege a palavra como solução para todas as dificuldades e vê o silêncio como o “inimigo reconhecido do homo communicans“.

Le Breton argumenta que o silêncio é muito mais do que a ausência de som ou a “falha da máquina”. Ele é uma “modalidade do sentido” e um “registo ativo do seu uso”, implicando “interioridade, uma meditação, uma distância assumida em relação à turbulência das coisas”. Longe de ser um vazio ou um “resíduo, uma escória a ser rejeitada”, o silêncio é o solo fértil de onde a palavra emerge e a condição necessária para que a comunicação não se torne “impensável”.

 

O Silêncio na Interação Social e na Política

O primeiro capítulo, “Silêncios da Conversação”, analisa como o silêncio pontua a fala e a torna inteligível, organizando e conferindo peso à troca social. O autor descreve os hábitos culturais do silêncio, notando que diferentes grupos (como os índios Athabascan ou os Sioux) têm ritmos de fala distintos que, quando em contacto, podem gerar mal-entendidos e julgamentos negativos. A obra aborda ainda o “sexo do silêncio”, destacando que a mulher é frequentemente constrangida a ele, o que pode se tornar um “sofrimento inconfessável do casal” e um sintoma de desigualdade de condição.

Em “Políticas do Silêncio”, o foco recai sobre o silêncio como ferramenta de poder ou resistência. O silêncio da hierarquia é um meio de controlo da interacção, sendo a autoridade favorecida por um doseamento sábio de sombra e luz. O silêncio pode ser uma forma organizada de oposição, um “ato positivo” que nega o reconhecimento do outro, exemplificado na resistência passiva em Le Silence de la mer. Contudo, a opressão totalitária e a censura procuram ativamente “reduzir ao silêncio” a dissidência, retirando o valor da palavra ao privá-la de quem a ouça.

 

Disciplinas, Mística e os Limites do Dizer

Le Breton dedica capítulos substanciais às formas de silêncio que moldam o interior do indivíduo e a sua relação com o transcendente.

No âmbito das “Disciplinas do Silêncio”, discute-se a “lei do silêncio” e o segredo, que é fundador da alteridade e exige um controlo rigoroso da palavra. “O segredo é o irmão uterino do silêncio” [p. 121] A psicanálise é apresentada como uma longa conquista de um silêncio ativo, onde o analista se abstém de falar para melhor escutar, servindo o seu silêncio como “arma terapêutica” e “quebra-voz” para dar densidade às palavras do paciente.

Em “As Espiritualidades do Silêncio”, o autor explora como o silêncio é entendido em diversas tradições. O silêncio é a “língua de Deus”, pois Ele transcende as palavras. Para o místico, o silêncio é a “via privilegiada” que conduz a Deus e é mais eloquente do que qualquer discurso. Práticas como o hesicasmo na Igreja do Oriente e as meditações no Budismo Zen utilizam o silêncio como um meio de desligamento do sensível e de libertação da mente.

 

O Silêncio da Morte e do Indizível

O livro atinge um ponto existencial ao tratar do silêncio face à dor e à morte. Há uma “estreita conivência” entre o silêncio e o sofrimento, o silêncio e a agonia. O aparecimento de uma recordação dolorosa “corta o fôlego” e impõe o silêncio. O autor confronta o “indizível”, referindo-se à impossibilidade da linguagem perante o horror, como na Shoah. A palavra “se oprime dentro de si, num silêncio que não é mais do que a forma extrema do grito”. O sobrevivente de experiências traumáticas descobre que a sua fala se dissolve na indiferença dos outros, pois um “universo de diferença dificilmente transponível” separa aquele que viveu o horror e aquele que o escuta.

A doença grave, como a seropositividade/AIDS, também impõe um “silêncio doloroso”, alterando o sentido das palavras e forçando o indivíduo a viver na incerteza. O silêncio rodeia a morte, sendo a ausência da voz do desaparecido uma “marca, quase metafísica”, que abala a existência dos que ficam.

Em resumo, Do Silêncio é um compêndio antropológico e filosófico que resgata o silêncio do seu papel de mero vazio, posicionando-o como uma força ativa, um recurso existencial e social. A obra demonstra que, embora a modernidade tente erradicar o silêncio com um “dilúvio de emoções” e o imperativo de comunicar, ele permanece como o horizonte último da palavra. Vale a pena recorrer ao próprio livro para perceber sua multiplicidade em torno do tema silêncio.

 

 


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