RESENHA
BACHELARD, G. La Poétique de L’Espace. 3. ed.1 Paris: Presses Universitaires de France, 1961.
Cídio Lopes de Almeida
[sem revisão por pares]
A resenha aborda o livro La Poétique de L’Espace de Gaston Bachelard, focando na filosofia e na psicologia da habitação. O autor explora como a imaginação e a memória se entrelaçam com a experiência do espaço, particularmente dentro da casa e seus diferentes elementos, como a cave, o sótão, armários e gavetas, e objetos do cotidiano. A obra analisa também a poética associada a refúgios mais primitivos como o ninho e a concha, além de considerar a imensidão e a miniaturização do espaço na rêverie. Bachelard utiliza exemplos literários para ilustrar como esses espaços evocam emoções e pensamentos profundos no leitor.
Palavras-chaves: espaço, imaginação, memória, fenomenologia da alma, Bachelard
La Poétique de L’Espace” de Gaston Bachelard
Gaston Bachelard, um filósofo com sólida formação na filosofia das ciências, propõe em “La Poétique de L’Espace” um afastamento deliberado de seus hábitos racionais para mergulhar no estudo da imaginação poética. O foco não está em um passado cultural ou em construções elaboradas de pensamento, mas sim na presença imediata à imagem poética no instante de sua emergência, na “minuto de l’image“.
A obra defende que a imagem poética é um relevo súbito do psiquismo que não pode ser explicado por causalidades psicológicas subalternas ou por uma base geral coordenada. Ela não é o eco de um passado nem está sujeita a um impulso causal; pelo contrário, pela clareza de uma imagem, o passado distante ressoa em ecos. A imagem poética possui um ser próprio, um dinamismo próprio. Bachelard busca construir uma ontologia direta dessa imagem, focando em seu retentissement (repercussão) – um conceito que, distintamente das ressonâncias sentimentais dispersas em nossa vida, nos chama a um aprofundamento de nossa própria existência. O retentissement faz o poema nosso, operando uma “viragem de ser” onde o ser do poeta parece tornar-se o nosso ser.
Uma das teses centrais é que a imagem poética é radicalmente nova e escapa às explicações causais da psicologia e da psicanálise. Embora a psicanálise possa ser útil para entender a personalidade do poeta e as pressões que ele sofreu, o ato poético, a imagem súbita, a “flambée de l’être dans l’imagination” (chama do ser na imaginação), escapam a tais investigações. A comunicabilidade de uma imagem singular, que “cria raiz em mim” mesmo sem o poeta me conferir o passado de sua imagem, é um fato de grande significado ontológico. As imagens arrastam depois do fato, mas não são fenômenos de um arrastamento.
Para abordar a imagem poética filosoficamente, Bachelard propõe uma fenomenologia da imaginação, que é um estudo do fenômeno da imagem quando esta emerge na consciência como um produto direto do “coração, da alma, do ser do homem captado em sua atualidade”. Ele argumenta que a transsubjetividade da imagem – como uma imagem singular pode reagir em outras almas sem preparação – não pode ser compreendida por referências objetivas sozinhas.
Bachelard distingue a filosofia da poesia como uma fenomenologia da alma (phénoménologie de l’âme) ao invés de uma fenomenologia do espírito (phénoménologie de l’esprit). O termo “alma” (âme), distinto de “espírito” (esprit), é crucial aqui, pois a filosofia da poesia deve acolher todas as potências do vocabulário e não simplificar ou endurecer os termos. A consciência associada à alma é mais repousada, menos intencionalizada do que a associada aos fenômenos do espírito. A poesia manifesta forças que não passam pelos circuitos do saber. A alma está na origem, inaugurando a forma, mesmo que o espírito seja necessário para estruturar o poema completo. Até na pintura, a fenomenologia da alma pode revelar o engajamento primeiro da obra, uma luz interior que não é reflexo do mundo exterior.
A novidade essencial da imagem poética coloca o problema da criatividade do ser falante. Essa criatividade, para Bachelard, faz da consciência imaginante uma origem. O estudo dessa “valor de origem” em diversas imagens poéticas é a tarefa de uma fenomenologia da imaginação poética. Esta investigação se limita à imagem poética em sua origem, deixando de lado a composição do poema como agrupamento de imagens, que envolve elementos mais complexos como a cultura e o ideal literário.
Bachelard se concentra em imagens isoladas onde o retentissement [repercussão, eco, impacto, ressonância] fenomenológico pode aparecer em sua simplicidade extrema. Ele busca uma esfera de sublimação pura, uma sublimação que nada sublima no sentido psicanalítico, mas que está liberta da carga das paixões e desejos. Tais imagens, embora possam parecer sem significado para psicólogos ou psicanalistas focados em paixões, têm uma significação puramente poética. A psicanálise, ao tentar explicar a imagem poética por seu contexto ou pela história de sofrimento do poeta, “intelectualiza” a imagem e a traduz para outra linguagem, perdendo sua novidade e ser próprio. Bachelard, citando Jung, aponta que focar nos antecedentes psicológicos do artista desvia o interesse da obra de arte em si.
A obra se propõe a examinar imagens bem simples, as imagens do espaço feliz, uma investigação que ele chama de topofilia. A casa, os porões, os sótãos, cantos, gavetas, baús, armários, ninhos, conchas, miniaturas e a imensidão são exemplos de espaços que serão explorados em sua dimensão poética e onírica. O espaço captado pela imaginação não é o espaço indiferente do geômetra, mas um espaço vivido, não em sua positividade, mas com as parcialidades da imaginação.
Um conceito central na obra é a casa. Ela é uma das maiores potências de integração para os pensamentos, lembranças e sonhos do homem. Nela, a rêverie [devaneio] é o princípio de ligação. A casa é nosso “canto do mundo”, nosso primeiro universo, um cosmos. Vista intimamente, mesmo a mais humilde morada é bela. A casa natal, em particular, tem um valor imperecível em nossas rêveries. A casa abriga a rêverie, protege o sonhador, permite sonhar em paz. Nossas lembranças se alojam na casa; a análise psicológica sistemática dos sítios de nossa vida íntima é o que Bachelard chama de topo-análise. Ele nota que o inconsciente está bem alojado, no espaço de sua felicidade, mas a psicanálise muitas vezes foca nos inconscientes “desalojados”. A topo-análise, em seu estudo dos espaços de intimidade, tem a marca da topofilia, pois esses espaços se designam pela atração e seu ser é bem-estar.
A casa é imaginada em sua verticalidade (polaridade cave/sótão) e em sua concentração. A cave evoca a irracionalidade das profundezas, enquanto o sótão está na zona racional dos projetos. A casa pode ser um ser que luta e resiste contra as forças do universo, como a tempestade, tornando-se um instrumento para enfrentar o cosmos. A casa vivida pelo poeta transcende o espaço geométrico.
Outros espaços íntimos como gavetas, baús e armários são vistos como órgãos da vida psicológica secreta, objetos-sujeitos que possuem uma intimidade. A armoire (guarda-roupa) é um “grande mot de la langue française“[palavra significativa da língua francesa], um centro de ordem e intimidade, cheio de lembranças e segredos. Baús com duplo fundo e fechaduras revelam a necessidade de esconder; a fechadura é um limiar psicológico, um desafio ao indiscreto.
O ninho e a concha são outras imagens de refúgio primitivo. O ninho, embora precário na realidade, desencadeia uma rêverie de segurança e confiança no mundo. A concha, com sua geometria perfeita e dureza, esconde um interior macio e nacarado, inspirando sonhos de habitação ajustada ao corpo. As lendas de seres que saem de conchas ou da ideia de fósseis como tentativas da natureza de criar formas humanas ilustram o dinamismo imaginário do pequeno e do escondido gerando o grande e o manifesto.
Os cantos da casa, embora simples, são espaços de intimidade e solidão. Neles, experimenta-se a imobilidade e a consciência do ser. A miniatura é outra fonte de imaginação, condensando valores e permitindo “mondifier à petits risques” (mundificar a pequenos riscos). O diminuto pode abrir um mundo de grandeza. O olhar atento, amplificado pela imaginação, transforma o pequeno objeto em um universo.
A imensidão, seja do mar, da planície ou da floresta, não é apenas um espetáculo exterior, mas uma imensidão interior que se revela em uma valorização. Para Baudelaire, a palavra “vaste” (“vasto”) significa essa imensidão íntima, uma intensidade de ser que se desenvolve em uma vasta perspectiva interior.
A dialética do fora e do dentro é fundamental, mas não simétrica para a imaginação. O ser humano é visto como um “être entr’ouvert” (ser entreaberto), sempre na fronteira entre manifestar-se e esconder-se. A porta é a imagem principal desse cosmos do entreaberto, simbolizando hesitação, tentação, segurança. Poetas podem subverter a lógica espacial, colocando o quarto dentro da cabeça ou o sol dentro do quarto, mostrando a elasticidade e a imprevisibilidade da imaginação.
Finalmente, a fenomenologia do redondo sugere que “tudo ser parece em si redondo”, “a vida é redonda”. A redondeza é vista como um rassemblement de l’être en son centre (reunião do ser em seu centro), uma constituição íntima e interna do ser. Imagens como o pássaro esférico ou a árvore redonda que saboreia a abóbada celeste ilustram essa redondeza plena como um modelo de ser, uma concentração da vida.
Em suma, “La Poétique de L’Espace” é uma exploração multifacetada de como a imaginação poética transforma nossa relação com o espaço, as coisas e nosso próprio ser. Bachelard, através de uma metodologia fenomenológica atenta à novidade e ao dinamismo das imagens literárias, revela camadas profundas de significado onírico e ontológico nos espaços mais simples e familiares. A obra desafia as abordagens psicológicas e psicanalíticas tradicionais, propondo que a poesia e a imaginação pura oferecem uma via direta para compreender o ser humano em sua capacidade criativa e em sua relação íntima com o mundo.
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