Cídio Lopes de Almeida*
O texto procura evidenciar como os silenciamentos históricos na Lusofonia perpetuam estereótipos e tabus, dificultando a construção de relações autênticas e a identidade coletiva. A hipótese central é que a falta de diálogo aberto e a desconfiança mútua impedem a criatividade cultural. Utilizando uma abordagem crítico reflexiva, apoia-se em conceitos que encontram ecos na ideia de Mia Couto. Conclui-se que as mídias sociais e as Tecnologias de Informação e Comunicação podem ajudar a superar esses silenciamentos, mas seu uso em contextos educacionais ainda é limitado.
A Lusofonia esconde em seu seio uma barreira invisível que impede o aprofundamento das relações sociais no contexto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). São temas silenciados nas interações socioculturais. Esses silêncios, presentes não apenas nas relações culturais entre as diversas comunidades e nações, mas também nas relações interpessoais e familiares, geram desencontros que enfraquecem a comunicação e dificultam a construção de laços humanos baseados em princípios de justiça, equidade e respeito às múltiplas diversidades — de gênero, culturais, econômicas, entre outras.
São temas considerados tabus, constrangedores ou delicados, frequentemente evitados na comunicação por medo de julgamento, constrangimento ou conflito. Na Lusofonia, esses pontos variam de acordo com a cultura local, mas podemos começar por um principal, ou o que mais contribui para esse bloqueio, e depois observar como as interdições em outros domínios geram sintomas. A brutalidade do processo econômico baseado na “plantation”, sustentado pelo extrativismo e pelo trabalho de pessoas subjugadas à escravidão, é um tema central que devemos resgatar da memória, além de nos empenharmos no presente para superá-lo. Para que os vestígios dessa barbaridade sejam não só reparados, mas definitivamente interrompidos, e que suas formas renovadas, ainda persistentes em nossos dias, sejam denunciadas e erradicadas de uma vez por todas. Esse processo não apenas degrada a dignidade humana, mas também os ecossistemas da fauna e da flora onde foi praticado. O tema atual da decolonialidade envolve não apenas a desconstrução dessas estruturas de poder imperial no âmbito da cultura humana, mas também questões relacionadas à preservação dos outros sistemas vivos ao nosso redor.
Posto em pauta o grande silêncio que nos perpassa, podemos adentrar no vasto universo dos silenciamentos da nossa Lusofonia. No âmbito da religião e da política, o exame precisa trazer à consciência nossos pontos em comum, especialmente no que se refere à maneira como o cristianismo, associado ao poder político, prestou o serviço de justificar a barbárie, distanciando-se de seus louváveis propósitos de defesa da dignidade humana. Em que medida o tabu de não falar sobre política e religião, tão presente na cultura brasileira, contribui para esse silenciamento? Além disso, é pertinente indagar qual foi o efetivo papel do Reino do Congo (sob Dom João I – Nzingha a Nkuwu, 1491), convertido ao Catolicismo Apostólico Romano, na manutenção desse processo, que hoje buscamos rememorar para superar quaisquer de seus traços ainda persistentes.
Na esfera da religião afro-brasileira, há ao menos duas questões silenciadas. A primeira diz respeito ao fato de que, apesar da abundância de escritos sobre como a reinvenção da religiosidade a partir de tradições “africanas” contribuiu para o surgimento do Brasil e das religiões afro-brasileiras, pouco nos perguntamos se essa reinvenção foi capaz de elaborar efetivamente os traumas da barbárie ou se as novas narrativas não estariam apenas dialogando com o “eu” do colonizador. Para que os processos de secessão colonial se completem, essas religiosidades precisam ir além e estabelecer outras referências, outros “outros”, remetendo-nos aqui às reflexões da Filosofia sobre o que é o eu e sua relação estruturante com o outro (Vicente Ferreira da Silva, 1950). Teriam essas narrativas sido verdadeiramente libertadoras da opressão? A segunda indagação refere-se ao modo como as demais religiosidades das regiões do continente africano, em contato com a lusofonia, foram utilizadas para a manutenção das estruturas de poder colonial e escravista. Teriam elas, de alguma forma, colaborado com processos longevos de exercício de poder, como os que se praticaram ao longo de duzentos anos na localidade próxima à atual Cabinda? (CONCONE, 1987). Ademais, ao lembrar a história de Zacimbra Gaba, princesa de Cabinda vendida como escrava para um proprietário de terras no atual Espírito Santo, torna-se necessário investigar mais a fundo as dinâmicas das guerras e das punições, convenientemente articuladas com a escravidão. Dado o longo período de duração desses processos, cabe indagar de que maneira eles marcaram as religiosidades em ambos os lados do Atlântico.
Não menos importante, na esfera psicoafetiva, da sexualidade e das relações interpessoais, quais seriam os efeitos decorrentes dos longos anos de barbárie escravista, silenciados em nossos dias? No caso do Brasil e de Cabo Verde – nação sobre a qual temos mais acesso por meio da comunicação social –, poderia esse legado estruturar a cultura da violência de gênero? No Brasil, quais implicações de um longo processo de violência escravista podem ter sido transpostas para a violência contra as mulheres? Ou ainda, não é exagero afirmar que o país ainda apresenta um dos mais grotescos índices de violência, considerando que a expectativa de vida média de uma pessoa transexual é de apenas 35 anos. De onde e como essa barbárie se relaciona estreitamente com o assassinato de jovens negros? Desenterrar esses silenciamentos significa reconhecer que a violência sexual contra mulheres era uma regra do regime escravista.
Em regimes de violência, não há diálogo, mas silenciamentos. Essa interdição parece ser replicada e mantida ao longo de nossa história comum. Os diversos regimes ditatoriais na Lusofonia, de diferentes formas, têm cassado a possibilidade de as pessoas se expressarem e restringido a praça pública – aquele espaço, tanto real quanto simbólico, onde Sócrates dialogava com os atenienses na Grécia do século V a.C. Isso nos leva à escassez de recursos sociolinguísticos para a resolução dos conflitos mais prosaicos em nossos dramas sociais.
O silenciamento nos leva à falta de intimidade e conexão com aqueles que nos são mais próximos, de modo dissimulado, e de forma ainda mais aguda com os Outros da grande comunidade cultural a partir da língua portuguesa. Compartilhamos uma narrativa comum, mas essa narrativa é feita de silenciamentos, e, por meio desse silêncio, afloram a angústia e a desconfiança. Cria-se, assim, um paradoxo: nós atraímos porque possuímos traços comuns que nos fazem querer conhecer os elementos não comuns, mas esse projeto nunca se consolida. Ele não consegue superar as desconfianças nem avançar para uma criatividade cultural coletiva mais ampla. O medo de falar abertamente impede a criação de laços mais profundos, fenômeno ilustrado pelo que Mia Couto (2009) denominou de “meia voz” ou “diafonia” como forma de expressividade da Lusofonia.
Esses não ditos perpetuam estereótipos e tabus. Romper os silenciamentos na Lusofonia é essencial para construir relações mais saudáveis e fortalecer a comunidade. Por meio do diálogo aberto e da escuta ativa, podemos superar barreiras invisíveis e estabelecer uma comunicação mais autêntica e profunda. As mídias sociais têm sido uma ferramenta importante para esse conhecimento mútuo, embora, por vezes, também sirvam para a propagação de estereótipos. Jovens engajados na produção de conteúdos digitais têm se destacado como um farol nesse processo, especialmente na criação de materiais voltados para a arte e o entretenimento. No entanto, o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação aplicadas à Educação tem sido mais tímido, particularmente em projetos públicos e estatais voltados à integração da vida universitária. Hoje, essa é a via mais factível e salutar para consolidarmos uma comunidade efetiva.
*Doutorando em Ciências das Religiões, Faculdade Unida de Vitória. Bolsista FAPES.
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