RESENHA*
KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. 1ª. Ed. Rosário: Fundación A. Ross, 2007. [Tomo I)
Cídio Lopes de Almeida**
A resenha apresenta um resumo panorâmico das obras que compõe o Tomo I das suas obras completas. Neste sobrevoo, destaca-se a rica exploração do pensamento e da identidade latino-americana. Através de quatro obras distintas, Kusch convida o leitor a questionar as noções preconcebidas de “civilização” e “barbárie”, mergulhando nas profundezas da cultura americana e revelando sua natureza complexa e muitas vezes contraditória. As obras do Tomo I são: “La Seducción de la Barbarie [1953], Indios, Porteños y Dioses [1966], De la Mala Vida Porteña [1966] e Charlas para Vivir en América [póstumo].
Resumo das obras:
1 La Seducción de la Barbarie (1953) serve como ponto de partida, estabelecendo a dicotomia central que permeia o pensamento de Kusch: a “civilização” europeia imposta versus a “barbárie” americana intrínseca. Kusch argumenta que a América Latina está dividida entre essas duas forças, com a “verdade de fundo” de sua natureza demoníaca (“estar”) constantemente desafiando a “verdade de ficção” de suas cidades europeizadas (“ser”). Ele explora como essa dicotomia molda a mentalidade, a história e a produção cultural da América Latina, argumentando que a verdadeira autoctonia reside nesse embate. Deve-se vincar que o termo barbárie para o autor tem um duplo modo de se apreciado. Ele toma esta ideia na medida que ela foi utilizada para desqualificar o latino-americano pelas leituras eurocêntricas, porém ele a transforma como algo positivo e passa a utilizar ela em sentido contrário. De uma palavra que denota um valor negativo sobre as culturas e pessoas, para uma palavra que é fonte da emergência da potência cultural destes que eram taxados como inferiores.
2 Indios, Porteños y Dioses (1966), baseada em programas de rádio, aplica as categorias filosóficas de Kusch a observações da vida cotidiana. Kusch justapõe a sabedoria indígena e popular com a perspectiva urbana europeizada, revelando como a “lógica da negação” da cidade se choca com a “lógica da afirmação” do interior. Através de anedotas e reflexões sobre tango, futebol e a vida cotidiana em Buenos Aires, Kusch ilustra como a “pequena história” pessoal se entrelaça com a “grande história” da América Latina. [em português temos adotado a expressão indígenas e não índios como mais adequada para fazer referência aos povos originários de onde hoje chamamos de Brasil. Nesta primeira leitura exploratório do seu pensamento, fiz a opção de manter os termos sem um debate de crítica, mas é notório que a forma como o autor introduz os saberes dos “índios” no debate filosófico está na mesma reflexão de superar as leituras preconceituosas anteriores.]
3 De la Mala Vida Porteña (1966) aprofunda a exploração da dinâmica urbana, focando na “mala vida” de Buenos Aires. Kusch analisa como essa subcultura desafia as normas sociais e morais impostas pela “civilização” europeia. Através da lente da “mala vida”, Kusch revela a persistência da “barbárie” e sua capacidade de subverter e reinterpretar os valores dominantes.
4 Charlas para Vivir en América (publicação póstuma) reúne uma série de reflexões sobre a experiência de viver na América Latina. Kusch convida o leitor a abraçar o “mistério do mero estar”, desafiando a busca incessante pelo “ser alguém” imposta pela mentalidade europeia. Ele argumenta que a verdadeira realização reside em se conectar com a terra, com as raízes culturais e com a sabedoria ancestral.
Em conjunto, essas quatro obras formam um corpo de trabalho que desafia as concepções tradicionais de identidade e cultura. Kusch nos convida a rejeitar a dicotomia simplista entre “civilização” e “barbárie”, reconhecendo a riqueza e a complexidade da experiência latino-americana. Ele nos incentiva a encontrar a verdadeira autoctonia, não em imitações da Europa, mas na sabedoria ancestral, na vida cotidiana e na profunda conexão com a terra. Através de sua análise herética, Kusch abre caminho para uma compreensão mais autêntica e profunda da América Latina e de seu lugar no mundo.
1 La seducción de la barbárie
La Seducción de la Barbarie (1953), a primeira obra de Rodolfo Kusch, apresenta uma análise crítica e provocativa da identidade latino-americana, desafiando as noções preconcebidas de “civilização” e “barbárie”. Kusch argumenta que a América Latina, como um continente mestiço, está presa numa constante luta entre essas duas forças, personificando a dicotomia central que percorre todo o seu pensamento.
A “civilização” europeia, imposta através da colonização, representa a “verdade de ficção”, um mundo artificial construído sobre a lógica da razão, do progresso e do “ser alguém”. Em contraste, Kusch identifica na “barbárie” americana a “verdade de fundo”, uma força telúrica e demoníaca que emana da terra e se manifesta na cultura popular, na sabedoria ancestral e no “mero estar”. O autor explora como essa dicotomia molda a mentalidade, a história e a produção cultural da América Latina.
A Metafísica Vegetal e o Reverso da América:
Kusch introduz o conceito de “metafísica vegetal” para descrever a essência da “barbárie” americana. Essa metafísica se manifesta na passividade, na fertilidade e na capacidade de crescimento orgânico, refletindo a profunda conexão do homem latino-americano com a natureza. Em contraste com a lógica da razão e do progresso linear da Europa, a América Latina se move num ritmo cíclico, regido pelas forças da natureza e pela sabedoria ancestral.
Kusch argumenta que o homem latino-americano vive um drama existencial, dividido entre a “civilização” imposta e a “barbárie” intrínseca. Ideia que ele denomina como o drama do mestiço. A cidade, símbolo da “civilização” europeia, se torna um espaço de negação da “barbárie”, enquanto o interior, com suas raízes indígenas e populares, representa a força da “verdade de fundo”. Essa tensão gera uma constante “sedução da barbárie”, uma força magnética que atrai o homem latino-americano para suas raízes culturais, mesmo quando ele tenta se afirmar como “civilizado”.
Kusch explora como a “barbárie” influencia a produção cultural e a escrita da história na América Latina. Ele critica a tendência de imitar modelos europeus, argumentando que a verdadeira autenticidade reside em abraçar a “verdade de fundo” e expressá-la em formas próprias. Em relação à história, Kusch questiona a narrativa linear e eurocêntrica, propondo uma leitura que reconheça a força do inconsciente, a presença do demoníaco e a influência da “barbárie” na formação da identidade latino-americana.
Em La Seducción de la Barbarie, Kusch convida o leitor a rejeitar a dicotomia simplista entre “civilização” e “barbárie”, reconhecendo a complexidade da identidade latino-americana. Ele argumenta que a verdadeira autoctonia reside nesse embate, na capacidade de integrar as duas forças e criar algo novo. O autor nos incentiva a buscar a “verdade de fundo”, a sabedoria ancestral e a profunda conexão com a terra, como caminhos para uma compreensão mais autêntica e profunda da América Latina e de seu lugar no mundo.
2 Indios, Porteños y Dioses
Em Indios, Porteños y Dioses (1966), o autor nos guia por uma jornada introspectiva e pessoal através das paisagens da Argentina e da Bolívia, buscando decifrar o enigma do “mero estar” que permeia a essência latino-americana. Partindo de suas experiências de viagem e observações da vida cotidiana, o autor tece reflexões filosóficas sobre a identidade e a cultura da América Latina, confrontando a “civilização” urbana com a “barbárie” do interior.
A obra, que tem suas raízes em programas de rádio conduzidos por Kusch em 1963 e 19641, se apresenta como uma série de “fotografias” de momentos e encontros vivenciados pelo autor, entrelaçadas com suas reflexões sobre a dicotomia entre a “civilização” europeia imposta e a “barbárie” americana intrínseca. (p. 142)
Ele explora o contraste entre porteños, isto é, os naturais de Buenos Aires, e os índios: Para ilustrar essa dualidade, Kusch utiliza a figura do porteño, o habitante de Buenos Aires, como representante da mentalidade urbana, moldada pela influência europeia e orientada para o “ser alguém”. Em contraposição, apresenta o indio, símbolo da sabedoria ancestral, da conexão com a terra e do “mero estar”.
Essa dicotomia se manifesta em diversas esferas da vida cotidiana, como na relação com o tempo, o trabalho e a espiritualidade: Enquanto o porteño vive num tempo linear, focado no progresso e na acumulação material, o indio se move num tempo cíclico, em sintonia com os ritmos da natureza e os ciclos de semeadura e colheita.
Para o porteño, o trabalho representa um meio de ascensão social e conquista material, enquanto para o indio é uma forma de comunhão com a terra e os deuses.
Espiritualidade: segundo o autor, o indio, representando a “barbárie” americana, detém um profundo conhecimento da “verdade de fundo”, um saber ancestral que se expressa na intuição, na sensibilidade e na conexão com o mundo espiritual.
A Busca pelos deuses e o mistério do mero estar. Sob esta ideia o autor explora a religiosidade popular e os rituais indígenas, como a challa e a consulta aos yatiris (xamãs), revelando a persistência de uma cosmovisão que integra o homem à natureza e ao cosmos. Através dessas práticas, o indio busca se conectar com os “deuses”, forças ancestrais que habitam a natureza e guiam os destinos humanos.
Em contraste com a busca incessante pelo ser alguém que caracteriza a mentalidade urbana, Kusch propõe o “mero estar” como caminho para a verdadeira realização. O mero estar implica a aceitação da impermanência, a conexão com o fluxo da vida e a entrega à sabedoria ancestral.
Apresença da barbárie também no seio da metrópole, encontrando-a na má vida porteña, expressa nos cabarés, bordéis e na cultura do tango. Para o autor, o tango, com sua melancolia e sensualidade, traduz a alma profunda do porteño, revelando suas frustrações, anseios e a busca por conexão.
Em Indios, Porteños y Dioses, Kusch nos convida a lançar um novo olhar sobre a América Latina, desprendido dos preconceitos e imposições da civilização europeia. O autor nos instiga a buscar a verdade de fundo na sabedoria ancestral, na religiosidade popular e na cultura do mero estar reconhecendo a riqueza e a complexidade da identidade latino-americana.
Kusch nos convida a abandonar a superficialidade da fotografia e mergulhar na essência da experiência, questionando as classificações e categorias preestabelecidas. Pode-se reter que o autor nos leva a ideia do “assombro original“, a reconectar com a semente da cultura americana e a romper com a lógica da realidade já feita imposta pela mentalidade europeizada.
Indios, Porteños y Dioses é um chamado para redescobrir a América Latina a partir de suas próprias raízes, reconhecendo a força da “barbárie” como elemento fundamental de sua identidade e fonte de uma sabedoria ancestral que pode nos guiar em direção a uma vida mais plena e autêntica.
3 De La Mala Vida Porteña
A terceira obra do Tomo I, De La Mala Vida Porteña (1966), aprofunda a exploração de Rodolfo Kusch sobre a identidade argentina, focando na cultura popular urbana e no “estilo de vida” do porteño. Kusch argumenta que o “lunfardo”, a linguagem coloquial de Buenos Aires, e expressões como pa’ mí e rajá de ahí, revelam uma sabedoria popular e uma forma de ser que desafiam a lógica racional e utilitarista da “civilização”.
Kusch analisa a expressão pa’ mí como chave para compreender a essência do ser argentino. Ele argumenta que o pa’ mí representa um espaço interior, um reino próprio onde o porteño guarda suas coisas sagradas – a família, os amigos, as paixões – e onde se refugia da impessoalidade e da frieza da realidade externa.
Esse espaço interior se contrapõe ao mundo do ser alguém, da busca por status e reconhecimento social, que Kusch associa à influência europeia. O pa’ mí representa a autenticidade, a conexão com as raízes e a busca por uma forma de vida mais simples e verdadeira.
O autor destaca o tango como expressão artística da má vida porteña e da alma profunda do habitante de Buenos Aires. A melancolia, a sensualidade e as letras do tango, que frequentemente narram histórias de amor, traição e perda, revelam a busca por conexão e a nostalgia de um passado idealizado.
O tango representa a “ida e volta”6, a oscilação entre a imersão na “realidade” da “civilização” e o retorno ao “pa’ mí”, ao espaço interior onde se encontra a verdadeira essência do ser argentino.
Nesta busca pela identidade nacional, analisa a obra “Martín Fierro” de José Hernández como uma representação épica da busca pela identidade nacional argentina. Para o autor, o personagem de Martín Fierro, um gaúcho que se rebela contra as injustiças da sociedade, personifica a “barbárie” americana em sua luta pela sobrevivência e pela preservação de seus valores. Destaque a importância da pequena história, aquela que se constrói a partir das experiências e vivências do povo, em contraposição à grande história oficial, que frequentemente ignora ou distorce a cultura popular.
Em De La Mala Vida Porteña, Kusch nos convida a reconhecer a presença da “barbárie” americana não apenas no interior do país, mas também no coração da metrópole. A cultura popular urbana, expressa no lunfardo[a forma de falar nos meios populares ou a gíria de Buenos Aires], no tango e em outras manifestações artísticas, revela a persistência de uma sabedoria ancestral e de uma forma de ser que resiste à homogeneização da “civilização”.
Kusch argumenta que a busca pela autenticidade e pela identidade nacional exige um mergulho na “má vida porteña“, na cultura popular e no “pa’ mí”, onde se encontra a essência do ser argentino.
4 Charlas para Vivir en América
A última parte do Tomo I, intitulada Charlas para Vivir en América, apresenta uma série de reflexões e insights de Rodolfo Kusch sobre a vida e a cultura na América Latina. A partir de suas observações do cotidiano, de suas viagens e de sua interação com as pessoas, Kusch nos convida a questionar os modelos de pensamento europeus e a buscar uma compreensão mais profunda da realidade latino-americana.
Kusch retoma em Charlas para Vivir en América a temática do mero estar, conceito central em sua obra e que representa uma forma de ser e de estar no mundo distinta daquela preconizada pela “civilização” ocidental.
O estar, para Kusch, se opõe ao ser alguém, à busca por status e reconhecimento social que caracteriza a mentalidade urbana e europeizada. O “estar” implica a aceitação da impermanência, a conexão com os ritmos da natureza e a entrega à sabedoria ancestral. O tema e a importância da cultura popular como fonte de conhecimento e de sabedoria. Através de exemplos como a challa [ritual de oferenda à Pachamama], a consulta aos yatiris [xamãs] e a culinária tradicional, Kusch demonstra como a cultura popular preserva valores e práticas que se perdem na vida urbana moderna.
Convida a abandonar os preconceitos e as categorias preestabelecidas, e a olhar para a América Latina com um olhar novo, livre das imposições da civilização europeia. Para o autor, a verdadeira compreensão da América Latina exige um mergulho em sua cultura popular, em seus mitos e em sua história.
Em Charlas para Vivir en América, Kusch utiliza exemplos concretos de suas viagens e de suas observações do cotidiano para ilustrar suas ideias. Ele descreve suas experiências em hotéis modestos, em chicherias [casas onde se vende chicha, bebida tradicional andina] e em mercados populares, revelando a riqueza e a complexidade da vida cotidiana na América Latina.
A narrativa de Kusch, permeada por humor e ironia, torna a leitura fluida e envolvente. Ele nos convida a acompanhá-lo em suas andanças pela América Latina, compartilhando suas descobertas e reflexões sobre a cultura e a identidade latino-americana.
Mais do que um conjunto de ensaios filosóficos, Charlas para Vivir en América se apresenta como um guia para a vida, um convite à reflexão sobre a nossa forma de estar no mundo. Kusch nos instiga a buscar a autenticidade, a conexão com nossas raízes e a viver em harmonia com a natureza e com a nossa própria essência.
*Resenha exploratória com objetivo de formar uma primeira visão geral do pensamento do autor. Não temos a intenção de uma cobertura maturada, como será nas próximas aproximações do pensamento do autor.
** Doutorando em Ciências das Religiões, Faculdade Unida de Vitória, bolsista FAPES.
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