Resenha [anotações]
BORGES, Paulo. A perplexidade em Ibn ‘Arabí ou do regresso à presença anterior à filosofia: uma reflexão sobre a sabedoria sufi a partir de María Zambrano. In: In: BORGES, Paulo. Vazio e Plenitude ou o Mundo às Avessas: Estudos e Ensaios sobre Espiritualidade, Religião, Diálogo Inter-Religioso e Encontro Trans-Religioso. Lisboa: Âncora Editora, 2018. p. 129 -148.
Cídio Lopes de Almeida
[sem revisão por pares]
O capítulo explora a perplexidade (hayra), um conceito central na obra de Ibn ‘Arabi, um mestre sufi, contrastando-o com a origem da filosofia ocidental. Enquanto Platão e Aristóteles veem o espanto como ponto de partida da filosofia, que busca causas e sistemas, María Zambrano sugere a violência como um motor, vendo a filosofia como um êxtase falhado. Para Ibn ‘Arabi, a perplexidade é um estado positivo de instabilidade e movimento, que transcende a lógica convencional e a racionalidade. Representa uma experiência divina paradoxal, onde o conhecimento de Deus se manifesta na incompreensão e na contínua transformação da realidade. Assim, a perplexidade é vista não como uma falha do intelecto, mas como uma porta para a compreensão da unidade da existência (wahdat al-wujud), na qual a divindade se revela constantemente em múltiplas formas, como um vórtice dinâmico.
As anotações sobre capítulo procuraram explorar e destacar a concepção de perplexidade (hayra) em Ibn ‘Arabi, contrastando-a com as origens da filosofia ocidental e destacando-a como uma experiência espiritual central e positiva no sufismo.
1. A Origem da Filosofia Ocidental vs. a Perplexidade Sufi:
Platão e Aristóteles situaram a origem da filosofia no thaumas (espanto, admiração). Aristóteles descreveu um espanto inicial que leva a um espanto final, “melhor”, do conhecimento da “causa”.
María Zambrano, contudo, argumenta que se a filosofia tivesse nascido apenas da “admiração”, não se teria plasmado tão rapidamente em “filosofia sistemática e abstrata”, pois a vida e suas maravilhas não permitem um “tão rápido desprendimento”.
Zambrano propõe uma origem alternativa: a violência, inspirada na alegoria da caverna platónica. A filosofia nasceria de um “conflito originário” entre “forças contrárias”, sendo um “êxtase fracassado por um dilaceramento” – um arrancar-se violento da imediatidade sensível para buscar algo ausente através do esforço intelectual e conceptual.
Esta “violência filosófica” troca a concretude sensível pela busca de “outra folha e outra água mais verdadeiras”, ideais.
Os poetas, em contraste, permanecem fiéis à “primitiva admiração extática” e à imediatez das coisas, possuindo imediatamente o que o filósofo busca através de uma “renúncia ascética”. O poeta vive num “mundo aberto” onde tudo é possível, sem os “limites” que o filósofo impõe.
Parmenides e outros pensadores gregos já apontavam para as origens extáticas e xamânicas da filosofia, onde o “arrebato” é fundamental para a “filosofia primeira”. Peter Sloterdick sugere que a filosofia surge quando os “mestres extáticos” se adaptam às regras urbanas, submetendo o “extático” à “retórica” e o “entusiasmo iluminativo” à sobriedade intelectual.
2. A Perplexidade (Hayra) em Ibn ‘Arabi:
Ibn ‘Arabi explora a perplexidade (hayra) como uma culminação na consciência do dinamismo autorrevelador da Realidade plena.
Ela se contrapõe à “deriva racional e epistemológica da filosofia ocidental”, que busca uma pacificação do pasmo pelo conhecimento conceptual. Pelo contrário, em hayra, o pensamento é conduzido pelo “arrebatamento ante a irredutibilidade do ‘mistério’ de ‘haver ser'”, que frustra o desejo natural de saber.
3. A Criação e a Manifestação Divina:
Na obra A Sabedoria dos Profetas, Ibn ‘Arabi descreve a criação como o ato de Deus (al-Haqq, a Realidade) querendo “ver as essências dos Seus Nomes muito perfeitos”.
A realidade manifestada surge (e surge continuamente) como o “espelho” e a “forma” do mundo, sendo Adão (o ser humano) a clareza desse espelho, o “Grande Humano”. Através de Adão, Deus “contempla a sua criação” e “contempla-se a si mesmo”.
A criação é uma transição da Essência divina absolutamente indeterminada para a “Unicidade” e, finalmente, para os seres e coisas que são suas determinações exteriores.
Deus manifesta-se plenamente no espelho do ser humano, e o ser humano, ao dissipar a ilusão de independência, descobre-se um reflexo da Realidade divina.
A criação é uma “divina Spiração” chamada “Nafas al-Rahman” (Suspiro de Compaixão existenciadora), que dá origem à “Nuvem” (‘amá) que recebe e dá todas as formas aos seres. Isso equivale à “Imaginação” teofânica, onde a divindade se diferencia internamente.
Deus torna-se “Criador-Criatura”, simultaneamente “esotérico” (bátin) e manifesto (záhir), oculto e revelado. O multiverso coincide e não coincide com uma divindade que é “simultaneamente si mesma e outra que si mesma”.
Compreender essa criação exige uma “consciência teofânica e gnóstica cada vez mais transparente”, que veja a sucessão e o movimento das formas como inseparáveis de sua essência única.
4. O Papel da Imaginação Ativa e a Crítica ao Intelecto:
Esta experiência é a da “Imaginação ativa” (Hadrat at-Khayál), a “Presença” ou “Dignidade” imaginativa. É um “domínio intermédio” onde se dá o “empourizamento espiritual”.
Essa imaginação teofânica revela a presença do divino nas imagens do mundo, mostrando-as como realidades e não aparências, sem ser uma fantasia subjetiva. É inseparável de uma “perceção mística” que vê o uno no múltiplo e o múltiplo no uno, “equidistante” tanto do politeísmo quanto do “monoteísmo monolítico, abstrato e unilateral”.
O texto cita o célebre Hadith Qudsi: “Eu sou o seu ouvido pelo qual ele escuta, a sua visão pela qual ele vê…”. Deus é os sentidos pelos quais o ser humano percebe o mundo, apontando para a “inseparabilidade de identidade e diferença”.
Ibn ‘Arabi critica o intelecto (‘aql), que “prende” (taqvid) a realidade em “categorias ou formas fixas e limitadas”. Embora essa função seja humana e necessária, o erro ocorre quando essas categorias são vistas como inerentes e absolutas à realidade, levando a “crenças conflituantes”.
A consciência que se fixa numa perspetiva “deixa de transparecer, experienciar e conhecer o próprio movimento constantemente metamórfico do real ou das teofanias”.
5. A Unicidade da Existência (Wahdat al-Wujud):
Uma visão atribuída a discípulos de Ibn ‘Arabi, a “unicidade da existência” (wahdat al-wujud), inverte a relação sujeito-predicado. Nela, a existência pura é Deus, e o “eu” é uma modalidade da existência divina unicitária.
A consciência teofânica humana “coincide” com a divindade. O conhecimento de si é o conhecimento de Deus, no sentido de que “tu não és tu mas tu és Ele e não há tu”. Isso implica que o ser humano “nem cessaste de ser nem existes. Tu és Ele e Ele é tu”. Conhecer a própria existência desta forma é Deus conhecer-se no ser humano.
Nessa perspetiva, a aniquilação (faná’) e a subsistência (baqá’) não são ações do sujeito, mas “a cifra que simboliza o contínuo desaparecimento das formas instantaneamente advinientes dos seres do mundo” e a “supra-existência” da Realidade divina que se pluraliza e metamorfoseia. Faná’ e baqá’ são simultâneos e inseparáveis.
O verdadeiro conhecimento é o reconhecimento de “não se ser senão Deus”, o “dogmatismo mais radical, não psicológico nem moral”, de se desimaginar possuir uma existência independente.
6. Perplexidade como Experiência Central e Paradoxal:
A hayra é a essência e forma suprema da perplexidade, não a de estar perdido, mas a de “simultaneamente encontrar e conhecer Deus e não o encontrar nem conhecer”. Ela transcende a lógica da não-contradição no afirmar-negar, encontrar-perder.
Ibn ‘Arabi cita uma afirmação divina: “E a tua perplexidade que te conduziu até Mim”. O “termo sem termo da viagem espiritual” é a própria perplexidade, que permanece após a transcendência de todas as “estações espirituais” (maqamât) e da própria ciência.
É uma “ignorância que transcende toda a ciência”, assim como a Essência divina transcende toda a perfeição.
O “acompanhamento divino consiste em que o ser humano seja conduzido à perplexidade… para que saiba que toda a existência é perplexidade”. Isso se deve à Realidade única que se diferencia sem diferenciação real, excedendo as antinomias da lógica convencional.
“A perplexidade é instabilidade e movimento; e o movimento é vida”. Ela liga-se ao dinamismo da teofania como uma “viagem e odisseia da consciência”.
A hayra surge das “perspetivas contraditórias”, mas quem a compreende não cai na confusão, vendo os estados de determinação de si como “estados de aparente determinação e diferenciação de Deus”.
A revelação é “simultaneamente desvelamento e ocultamento”: o absoluto surge como “Deus” (o criador incriado) e como “criatura”.
Há uma perplexidade positiva, inerente à “abertura extática e teofânica” e livre da confusão da razão conceptual. Ela é a experiência de conhecer sem conhecer.
No Livro das Contemplações Divinas, Deus exalta a hayra como o que conduz ao reconhecimento da transcendência divina, libertando Deus das “determinações e limitações” impostas pela consciência humana, incluindo as de ser “Deus” e “criador”.
Deus confronta a consciência com paradoxos lógicos: “Tu és eu e eu sou tu”; “Tu não és eu e eu sou tu”; “Tu és tu e eu sou eu”.
“A visão da perplexidade é perplexidade”, “A perplexidade é a verdade da verdade”, e “Aquele que não se detém na perplexidade não me conhece de modo algum e aquele que me conhece não pode conceber a perplexidade”. Esta perplexidade gera crescente perplexidade.
É a condição e essência de todas as virtudes espirituais, “fonte inspiradora dos enviados” e “princípio de elevação dos profetas”. “Feliz aquele que experimenta a perplexidade”.
O capítulo de Livro das Contemplações Divinas conclui com: “O nada testemunhou pela perplexidade: Eu sou Deus, não há Deus senão eu”. Ruspoli considera-a “uma estação espiritual insigne além de todas as outras”.
A hayra é o fim da viagem espiritual e não tem um ponto final fixo, ao contrário de outras estações. Move-se no infinito e na totalidade dos possíveis, sendo o próprio movimento cósmico da Vida divina.
7. Diferentes Interpretações da Hayra:
Toshihiko Izutsu vê a perplexidade como resultado da inseparabilidade de tanzih (transcendência) e tashbih (imanência), “ver o Uno nos Muitos e os Muitos no Uno”. Contudo, ele conclui que a consciência perplexa ainda não ultrapassou um “nível superficial de captação”, pois um sábio não teria lugar para a perplexidade.
O texto discorda de Izutsu, argumentando que a interpretação de Izutsu se baseia numa única passagem fora de contexto e num comentador posterior.
Michael Sells afirma que todo indivíduo que se liberta das “prisões da intelectualidade” vive a experiência da perplexidade.
Andrey Smirnov considera a perplexidade o “conceito fulcral da epistemologia de Ibn ‘Arabi”, com conotação positiva. Ele sugere ler hayra como hira, que significa “vórtice”.
A consciência perplexa está em “constante movimento”, sem se fixar em nenhuma parte, movendo-se no “vórtice da vida”. Ela transita constantemente entre os aspetos opostos e complementares da realidade (Deus/mundo, exterior/interior). O próprio cosmos é perplexidade.
Smirnov argumenta que esse “vórtice da perplexidade” é a chave para a compreensão da arte e da caligrafia islâmica, convidando a uma “viagem sem detença” onde beleza e verdade se confundem.
8. Anotações finais:
A perplexidade em Ibn ‘Arabi representa um “regresso” ao “arrebatamento extático” anterior à “violenta separação originadora da filosofia” de Zambrano.
Ibn ‘Arabi move-se no sentido oposto à racionalidade ocidental, buscando o “maravilhamento e suspensão extáticos da consciência”.
A hayra é análoga ao espanto e pasmo original de uma consciência ainda não cindida da “imediata Presença metamórfica dos fenómenos num mundo aberto”. Ela evita as categorias fixas do intelecto que prendem a compreensão formal das coisas, perdendo seu “fundo sem fundo” de constante metamorfose.
A hayra é afim à experiência poética do mundo, vista como uma poesia divina. É o “vórtice ou vertigem de um Deus que se autodeslumbra a cada instante” ao manifestar-se em formas sempre novas, numa imprevisibilidade divina e autopoética irredutível a qualquer sistema.
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