Dr. António Braz Teixeira, imagem original em: Nova Águia [blog]
RESENHA
TEIXEIRA, António Braz. O Pensamento Filosófico de Vicente Ferreira da Silva. Revista Reflexão, Campinas, n. 75, p. 3247, set./dez. 1999.
Cídio Lopes de Almeida
[sem revisão por pares]
Resumo
As obras de Vicente Ferreira da Silva são revistas, com ênfase na sua filosofia da mitologia na última fase do seu pensamento, marcada por uma crítica ao antropocentrismo em favor de uma compreensão do ser ligada ao mito e ao sagrado. O seu percurso filosófico é apresentado em três momentos: um inicial interesse pela lógica matemática, seguido por uma fase antropológica e existencialista, culminando na sua original filosofia da mitologia e do sagrado, que valoriza o mito sobre o logos e explora a relação entre o Ser, os deuses e a experiência humana. A análise abrange desde a sua conceção da morte e da intersubjetividade até à sua visão da história, da arte e da religião, culminando numa onto-teologia que prioriza o mítico-poético como acesso à verdade do Ser.
Resenha do artigo O Pensamento Filosófico de Vicente Ferreira da Silva
O artigo de António Braz Teixeira apresenta Vicente Ferreira da Silva como uma das maiores expressões do pensamento filosófico espiritualista no Brasil, com destaque para a sua filosofia da mitologia. O autor identifica três fases distintas no seu itinerário especulativo.
A primeira fase é marcada pelo interesse de Vicente Ferreira da Silva pela lógica matemática, influenciado por Russell, Whitehead e Wittgenstein. Os seus primeiros trabalhos especulativos foram a conferência A Lógica Moderna (1939) e o livro Elementos de Lógica Matemática (1940). O que o atraiu na nova lógica simbólica foi a sua independência da filosofia e da metafísica, bem como a sua capacidade de alcançar esquemas mentais adequados à descrição da realidade, especialmente no estudo das proposições relacionais. Essa fase juvenil de confiança na razão e interesse pela lógica matemática levou-o a ser convidado para assistente de Willard Van Quine e assistente de Lógica na Universidade de São Paulo. No entanto, este interesse inicial não perdurou nem satisfez os seus anseios espirituais por muito tempo.
A segunda fase inicia-se por volta de 1948, com a publicação de Ensaios Filosóficos, seguida por Exegese da Ação (1949) e confirmada pelo seu primeiro livro sistemático, Dialética das Consciências (1950). Esta fase revela uma mudança radical de rumo no seu pensamento, com o núcleo temático a ser de natureza antropológica, focando-se no problema do homem numa perspectiva marcada pelo diálogo com o pensamento existencial e caracterizada por uma atitude predominantemente humanista, embora atenta ao sentido do mito e do sagrado.
A reflexão sobre a morte é o ponto de partida da sua indagação antropológica, vista não como um simples problema, mas como um mistério. A morte própria é uma experiência intransmissível.
Esta fase admite filosoficamente a noção de mistério e um conceito de razão aberta a outras formas gnósicas, como o sentimento e a intuição, e atenta ao domínio do sagrado e ao valor do mito.
A sua interpretação da sensação e do sensível enfatiza a sua originalidade anterior ao conhecimento e a sua afinidade com os processos volitivos, sendo irredutíveis à consciência noética. O mundo sensorial é visto como resultado de uma impulsividade original.
O elemento corpóreo é crucial, sendo o corpo o órgão da nossa atenção ao mundo e veículo da realidade pessoal. Contudo, o núcleo ontológico do homem é a liberdade.
A dialética intersubjetiva das consciências é a dimensão essencial da condição humana e elemento criador da sua própria realidade. O homem é um ser gremial que necessita do outro para a sua realização. O processo de reconhecimento é central nesta dialética e identifica-se com a verdade existencial.
A solidão é dialética e transitiva, orientando-se para uma nova comunicação. O encontro implica o encontro consigo mesmo e com o outro.
A sua antropologia serve de base para a sua distinção entre filosofia e ciência, a sua gnosiologia da realidade humana, a sua noção de cultura radicada na palavra mítica, esboços de estética, visão da história, crítica do progresso e do pensamento utópico, e a proposta de uma “moral lúdica”.
Vicente Ferreira da Silva critica o positivismo por elevar critérios científicos a normas supremas de verdade. Distingue entre existência ôntica (mundo das coisas) e existência prática (domínio do querer).
A cultura é a objetivação do espírito, sendo a linguagem e a palavra mítica fundamentais. O mito é uma forma da imaginação poética com perene contemporaneidade.
Na estética, a arte possui um sentido demiúrgico e criador, sendo metamorfose e transcendência. A palavra poética é libertadora.
A sua reflexão sobre a História critica as visões cíclicas e as fundadas no mito do progresso contínuo, vendo-a como um processo com um sentido interior e subjetivo.
A crítica ao pensamento utópico baseia-se na rejeição da ideia de uma forma normal e canónica do existir humano e na concepção do homem como resultado da sua liberdade e historicidade.
A “moral lúdica” propõe que a verdadeira conduta ética reside em ações autossuficientes, tendo o jogo como seu símbolo. [o agir orientado a partir da aderência livre da pessoa à ação].
O insucesso na tentativa de ingresso no magistério universitário não afetou a sua vocação metafísica. Continuou a publicar ensaios filosóficos em diversas revistas, sendo um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia.
A terceira e última fase do seu percurso especulativo inicia-se com o ensaio Introdução à Filosofia da Mitologia (1955). Nesta fase, consumada a crise do humanismo anterior, o centro passa a ser ocupado pela onto-teologia e pela reflexão sobre o Ser, o mito e o sagrado.
Há uma crítica radical à confiança inicial na lógica e na razão como vias de acesso à verdade, contrapondo a prioridade do mito sobre o logos e do Ser sobre o conhecimento fragmentado.
Os conceitos anteriores de liberdade, historicidade e temporalidade são revistos, assim como o lugar do homem na ordem cósmica. Anuncia-se um possível regresso dos deuses e um novo paganismo.
O homem é agora compreendido como um princípio derivado e subordinado ao Ser, cujo poder projetante é a condição de possibilidade das possibilidades humanas. A liberdade humana é vista como um poder de escolha conferido pelo Ser.
A História humana é parte da História divina, e o tempo está essencialmente relacionado com o domínio do Ser, superando uma visão antropocêntrica. O ponto de partida para a compreensão histórica são os poderes e figuras numinosas. O mito explica e funda a História, e não o inverso.
O mito não é uma criação da consciência humana, mas a presença real e efetiva dos deuses, pensamento do Ser.
O conceito de aórgico, termo de Hölderlin, refere-se ao não feito pelo homem, mas resultante das possibilidades oferecidas pelos deuses e pelo Ser.
A antropofania humanista realizou-se sobre o fundo da ocultação do divino, sendo o reverso da teocriptia. A revelação cristã dessacralizou a natureza em proveito do homem. Contudo, a missão da civilização cristã estaria esgotada, prenunciando uma nova cultura receptiva ao divino.
O filósofo procura esboçar uma filosofia religiosa e uma teoria do sagrado a partir de uma onto-teologia independente da razão analítica.
O Ser é entendido como Sugestão ou Fascinação instauradora, Abertura, matriz originante e poder pulsional.
Os deuses são a projeção do divino originário, origens absolutas e poderes desvelantes. O processo teogónico é caracterizado por uma litigiosidade interna (“teomaquia”).
O culto é a representação do mito. O sacrifício encontra sentido no papel do sangue como matriz do ser do homem, sendo uma oferenda aos deuses.
A vida e a atividade especulativa de Vicente Ferreira da Silva foram bruscamente interrompidas por um acidente em 1963. É considerado “a maior vocação metafísica brasileira”. A sua vasta obra filosófica foi publicada postumamente em dois volumes de Obras Completas por iniciativa dos seus amigos do Instituto Brasileiro de Filosofia.
Compartilhe isso:
- Clique para compartilhar no WhatsApp(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Twitter(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Facebook(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Reddit(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no LinkedIn(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Pinterest(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Telegram(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Pocket(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Tumblr(abre em nova janela)
Relacionado
Descubra mais sobre AMF3
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.