Resenha
INCONTRI, Dora. Kardec para o século 21. Prefácio Alysson Leandro Mascaro. Bragança Paulista: Ed. Comenius, 2025.
Cídio Lopes de Almeida
O desafio dos(as) cientistas das humanidades é não misturar o que se pensa ou valora com o que se mostra, perfila e estampa objetivamente. Esse ponto é o desafio das ciências enfeixadas na sigla humanidades, pois o seu objeto, a sua verdade, é sobre si, em última instância sobre a humanidade que se mostra no próprio fazer do(a) cientista.
E se tem uma área da pesquisa em que esse tema é demandado é o das Ciências das Religiões. O próprio nome sempre nos convida a pontuar algo para com o nosso(a) interlocutor(a): isso trata de ciência, não de religião, ainda que seja ciência feita sobre religião.
O livro Kardec para o século 21, da Professora Doutora Dora Incontri, me parece fazer parte desse universo em que certos valores, ao estampar o título, pulam a frente, agarra como mariscos nos cascos dos navios, e tendem a vincar o olhar que se dirige a obra e ao fenômeno que nem mesmo foram lidos. Outra metáfora para essa ideia é o pensar por curto circuito, dado o nome de Kardec logo vem espiritismo e o termo religião. Milésimos de segundo depois, a ideia que para os “espíritas” há reencarnação. Sem descuidar do último elemento, será que é verdade que os mortos falam com os vivos?
Creio que resenhar a obra Kardec para o século 21 faz-se necessário essa problematização inicial. Esse questionamento visa jogar luz sobre uma constelação de valores instalados secretamente em nossa consciência e que se misturam na hora de apreciarmos certos fenômenos sociais. Valores de um senso-comum que não resiste a perguntas simples, que são contraditórias, precárias, superficiais. Aliás, valores que ao serem postos à luz da consciência, nós mesmos o deixaram de bom grado, dado suas contradições e mesmo preconceitos.
A minha leitura da obra foi meio estranha ou não linear. Comecei pelos capítulos que dialogavam mais com a minha formação e pesquisas atuais. Posso dizer, comecei por certos valores e ideais que habitam o meu fazer mais imediato. Assim, fui logo no capítulo 7 O espiritismo é uma religião? Depois passei ao capítulo 8 Há uma teologia espírita? Depois do 5 O espiritismo tem evidência científica? Depois, capítulo 6 O espiritismo tem consistência filosófica? E, estranhamente, vou ao capítulo 1 O que é o espiritismo? E daí ao capítulo 15 O que o espiritismo tem a dizer ao século 21? Desses capítulos, saltamos para a leitura dos demais, pois mostravam-se como cenas dos próximos capítulos e de modo instigante a eles fomos lendo até completar toda a obra.
A obra nos permite verificar um diálogo entre as ideias de Kardec, e como elas se constituíram no espiritismo, com a fortuna literária da filosofia, educação, antropologia, sociologia, enfim, das humanidades. Por esse ponto, pode-se dizer que nessa articulação entre temas, disciplinas das humanidades, autores, a obra dialoga com as Ciências das Religiões. E dentro dessa área, a Filosofia de Vida é uma parte temática ou disciplina que a compõe e onde os temas desenvolvidos pela obra podem ser situados. Nesse quadro, o desenvolvimento conceitual da obra permite-nos afirmar que se trata de uma abordagem que estampa todas as fases de um fenômeno de Filosofia de Vida contemporâneo. O que também pode gerar certos aparentes paradoxos para os não cientistas da religião, pois há aspectos nesses fenômenos semelhantes aos fenômenos religiosos, ainda que eles sejam uma Filosofia de Vida.
Essa indicação, expresso em especial no capítulo 6 O espiritismo tem consistência filosófica?, não é para denotar qualquer conjunto de ideias, por vezes ideologias, seja no sentido de Marx ou naquele sentido de Gramsci – visão de mundo. Aqui, Filosofia de Vida implica em um método específico, no estabelecimento de um ponto de debate, na proposta de um exame de si ou da alma, na busca de uma implicação não só pessoal, bem como social, numa pedagogia que consiga propor um caminho para os exercícios meditativos, etc. Dizer que é uma Filosofia de vida não é para enfeixar de modo genérico algo que exprime ideias e ideias à solta pelas redes sociais.
Sem dúvidas essa resenha é cheia de lacunas, porém, e sem ser comprometida essa afirmação, a obra mostra-se como uma fonte bibliográfica muito oportuna para os pesquisadores(as) das Ciências das Religiões. Ela apresenta uma perspectiva de abordagem crítica de um expressivo fenômeno de Filosofia de Vida entre nós brasileiros que é o Espiritismo. Ademais, se o livro opta por uma escrita ao estilo de divulgação científica, para a pesquisa acadêmica tem-se ao final de cada capítulo uma considerada lista bibliográfica, que se constitui não só de uma literatura de adeptos, mas sobretudo de clássicos da fortuna literária acadêmica. Ademais, o debate do texto é ao estilo de divulgação, contudo, para aqueles pontos que conhecemos, nomeadamente da filosofia, educação e teologia, atesta-se que a dissertação exprime conceitos e ideias com o rigor próprio da produção acadêmica em geral. Como dizia um antigo mestre, escrever fácil é a parte mais difícil para nós cientistas das humanidades. O livro tem esse mérito, escreve fácil, sem descurar os mais caros conceitos postos em debate.
Agradeço a amiga Carla Rocha Pavão pelo presente do livro em tela.
Compartilhe isso:
- Clique para compartilhar no WhatsApp(abre em nova janela) WhatsApp
- Clique para compartilhar no X(abre em nova janela) 18+
- Clique para compartilhar no Facebook(abre em nova janela) Facebook
- Clique para compartilhar no Reddit(abre em nova janela) Reddit
- Clique para compartilhar no LinkedIn(abre em nova janela) LinkedIn
- Clique para compartilhar no Pinterest(abre em nova janela) Pinterest
- Clique para compartilhar no Telegram(abre em nova janela) Telegram
- Clique para compartilhar no Pocket(abre em nova janela) Pocket
- Clique para compartilhar no Tumblr(abre em nova janela) Tumblr
Relacionado
Descubra mais sobre AMF3
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.