As Sete Artes Liberais Sob enfoque Socialista

As Sete Artes Liberais Sob enfoque Socialista

As Sete Artes Liberais Sob enfoque Socialista

 

Cídio Lopes de Almeida

[anotações para aula]

 

Introdução 

         As Sete Artes Liberais, um currículo educacional com raízes na Antiguidade Clássica e formalizado na Idade Média, representam um legado intelectual de inestimável valor. Tradicionalmente divididas em Trivium (gramática, lógica e retórica) e Quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), essas disciplinas visavam a formação do scholar [monges, raramente leigos aristocratas] capaz de participar ativamente da “vida pública” [para época, no âmbito eclesiástico, nas escolas e universidades da época, administração régia e episcopal] e de desenvolver plenamente suas capacidades intelectuais. No entanto, em tempos recentes, temos observado uma apropriação seletiva e ideologicamente carregada desses conceitos por vertentes conservadoras e de direita, que buscam performar uma discursividade em que esse legado parece estar intimamente ligado aos fundamentos conservadores, como pilares de uma educação tradicionalista e, por vezes, excludente, destinado aos poucos “gênios” da inteligência coetânea. Algo semelhante ocorre sobre termos como “tradição, família e propriedade” [constrangendo usarmos a expressão povos tradicionais; a família como núcleo original de afetividades, sem ser no formato idealizado conservador, etc.] foram cooptados para servir a agendas reacionárias. Como se tal repertório fosse um passado glorioso dessas propostas de visão de mundo.  As Sete Artes Liberais correm o risco de ter seu potencial emancipatório obscurecido por essas interpretações restritivas, privando-as daquele caráter inovador para a época de surgimento das universidades europeias.

        Este ensaio/roteiro de aula propõe uma resenha crítica/reflexiva das Sete Artes Liberais sob uma perspectiva socialista, argumentando que essas ferramentas intelectuais não são nativas da vertente ideológica conservadora. Propomos um olhar um pouco mais atento, sobretudo na emergência do tema no período da Idade Média, reivindicado como instrumentos fundamentais para a libertação humana [não nos temos do socialismo dos séculos XIX e XX], pois naquele contexto do medievo havia a promoção do pensamento crítico em torno dessa sigla e a construção de uma sociedade mais justa e igualitária [contextualizados naquela época], que era um fruto inerente a quem de fato dominava os repertórios de conhecimento aí postos. Ao desvincular as Artes Liberais de sua apropriação conservadora, fato social que se manifesta acentuadamente nas ideologias conservadoras do século XX, é possível redescobrir seu poder transformador e sua relevância para uma pedagogia engajada na emancipação social. 

 

O Trivium: Ferramentas para a Compreensão e a Transformação da Linguagem 

         O Trivium, a divisão inferior das Artes Liberais, concentra-se nas artes da linguagem, fornecendo as bases para a comunicação e o pensamento. É composto por gramática, lógica (ou dialética) e retórica. Em termos socialistas/progressista, não se pode contornar que propiciar o domínio adequado da linguagem seja condição fundamental para gerar o engajamento dos oprimidos [opressão social e subjetiva] em sentido adequado para se libertarem. Por isso, propostas ideológicas libertadoras ocupam-se de uma ideia de alfabetização adequada das pessoas. Ler a si é o primeiro passo para ler o contexto. De certo modo, em linhas gerais, no medievo, o domínio dessas habilidades propiciava justamente uma libertação de uma discursividade moralizante e teológica-política vigente. 

 

Gramática: A Estrutura da Realidade e da Narrativa 

         A gramática, a primeira das artes do Trivium, é a arte de inventar e combinar símbolos, o estudo da estrutura da linguagem e a compreensão dos textos. Em uma perspectiva socialista, a gramática transcende a mera correção linguística para se tornar uma ferramenta crucial na análise e desconstrução das narrativas hegemônicas. A forma como a linguagem é estruturada e utilizada reflete e molda a percepção da realidade. Compreender a gramática permite identificar como discursos dominantes são construídos, quais elementos são enfatizados ou omitidos, e como a linguagem pode ser manipulada para perpetuar desigualdades. Ao dominar a gramática, o indivíduo adquire a capacidade de desvendar as ideologias implícitas nas comunicações, de questionar as “verdades” impostas e de construir narrativas alternativas que promovam a solidariedade e a justiça social. É a base para a leitura crítica do mundo, essencial para qualquer projeto de transformação.

 

Lógica (ou Dialética): O Pensamento Crítico como Arma Emancipatória 

         A lógica, ou dialética, é a arte de pensar, de argumentar e de discernir a verdade do erro. Em um contexto socialista, a lógica é uma ferramenta indispensável para o desenvolvimento do pensamento crítico e analítico. Ela capacita o indivíduo a identificar falácias, contradições e os pressupostos ideológicos subjacentes em argumentos que buscam justificar a exploração e a opressão. O estudo de silogismos e a capacidade de construir raciocínios coerentes tornam-se essenciais para a desmistificação de discursos que naturalizam a desigualdade social e econômica. A lógica, portanto, não é um exercício abstrato, mas uma prática engajada na busca pela clareza do pensamento em prol da libertação. Ela permite que os oprimidos articulem suas experiências e reivindicações de forma racional e convincente, expondo as irracionalidades do sistema capitalista e suas justificativas.

 

Retórica: A Arte da Persuasão para a Mobilização Social 

         A retórica, a arte de persuadir, ensina a expressar ideias de forma clara, eficaz e persuasiva. Sob uma ótica socialista, a retórica é fundamental para a mobilização e o engajamento das massas na luta por direitos, equidade e mudanças estruturais. Não se trata de manipulação, mas da capacidade de comunicar uma visão de futuro mais justo, de inspirar a ação coletiva e de construir consensos em torno de objetivos emancipatórios. A retórica socialista busca dar voz aos marginalizados, amplificar suas demandas e construir um discurso que ressoe com as aspirações de uma sociedade mais humana e solidária. É a arte de transformar a compreensão crítica (gramática e lógica) em ação política efetiva, articulando a necessidade e a possibilidade de um mundo diferente. 

 

O Quadrivium: Compreendendo o Mundo para Transformá-lo 

         O Quadrivium, a divisão superior das Artes Liberais, foca nas artes matemáticas, oferecendo uma compreensão das relações quantitativas e da ordem do universo. É composto por aritmética, geometria, música e astronomia.

 

Aritmética e Geometria: Desvendando as Estruturas da Desigualdade 

         A aritmética, o estudo dos números em si, e a geometria, o estudo dos números no espaço, são frequentemente vistas como disciplinas puramente técnicas. No entanto, em uma perspectiva socialista, elas se tornam ferramentas poderosas para a análise das estruturas econômicas e sociais. A aritmética permite quantificar a distribuição de riqueza, a desigualdade de renda, os custos sociais da exploração e os benefícios potenciais de uma economia planificada. A geometria, por sua vez, pode ser utilizada para analisar a organização espacial das cidades, a segregação urbana e o acesso desigual a recursos e serviços. Ambas as disciplinas fornecem os meios para expor as injustiças materiais e para formular modelos mais equitativos de organização social. Elas são essenciais para a compreensão materialista da história e da sociedade, revelando as bases quantitativas da opressão e as possibilidades de sua superação.

 

Música: Expressão Cultural e Resistência 

         A música, o estudo dos números no tempo e da harmonia ou proporção sonora, transcende a mera estética em uma abordagem socialista. Ela é vista como uma poderosa forma de expressão cultural, de coesão social e de resistência. A música pode expressar as alegrias e as dores do povo, celebrar a luta e a solidariedade, e inspirar a esperança em tempos de adversidade. Canções de trabalho, hinos revolucionários e manifestações artísticas populares são exemplos de como a música se torna um veículo de mensagens e sentimentos que reforçam a identidade coletiva e impulsionam a transformação social. A compreensão da música, portanto, não é apenas uma apreciação artística, mas um reconhecimento de seu papel na construção de uma cultura emancipatória.

 

Astronomia: Universalidade e Cooperação Global 

         A astronomia, o estudo dos números no espaço e no tempo, e do movimento dos corpos celestes, tradicionalmente amplia a perspectiva humana sobre o universo. Em uma visão socialista, ela reforça a ideia de interconexão e universalidade. O estudo do cosmos nos lembra da pequenez das divisões humanas diante da vastidão do universo e da necessidade de cooperação global para enfrentar desafios compartilhados. Questões como a crise climática, a exploração de recursos e a busca pela paz mundial ganham uma nova dimensão quando vistas sob a lente da astronomia, que nos convida a transcender fronteiras e a reconhecer uma humanidade comum. A astronomia, assim, inspira uma visão de solidariedade planetária, essencial para a construção de um futuro socialista.

 

Anotações críticas sobre conservadorismo e as 7 Artes Liberais.

         O movimento de educação clássica, que se inspira nas artes liberais, tem sido crescentemente apropriado por setores conservadores e de direita, especialmente nos Estados Unidos. Essa apropriação busca reorientar o ensino, focando numa ideia que julgam ser o cânone ocidental, com ênfase em uma certa ideia de moralidade e civismo. Considerando que até mesmo a ideia de moral e civismo já são enviesada, sendo outra apropriação, pois de um ponto de vista social, se tem advogado uma moralidade é uma ideia de vida cidadã, um civismo portanto. 

 

Retórica e Ideologia 

         A retórica conservadora apresenta as artes liberais como um baluarte contra a “decadência moral e intelectual” atribuída a ideologias progressistas. A “educação clássica” é promovida como um retorno a valores e métodos de ensino tradicionais, com um cânone literário predominantemente eurocêntrico. Essa abordagem, embora se apresente como um resgate de uma tradição educacional, é, na verdade, uma apropriação seletiva e ideologicamente precária. Ao focar em uma “verdade objetiva” e em virtudes específicas, ela pode marginalizar outras perspectivas e conhecimentos, transformando as artes liberais de ferramentas para o pensamento crítico e a liberdade intelectual em instrumentos para a inculcação de uma visão de mundo limitada e conveniente a uma fração social, particularmente aquela em que um certo sucesso material é percebido de modo imediato como uma dádiva divina, um lugar que é merecido e justo. Esquivando-se por completo de pensar sobre uma fortuna literária que constrói madura reflexão sobre como os fluxos econômicos foram acumulados.

 

Críticas à Apropriação 

         Não será impossível desmontar que tais apropriações, sob um olhar socialista e progressistas, é, em suas trações estruturantes, um projeto cristão que não reflete a diversidade da sociedade, especialmente de grupos não-brancos ou com raízes fora do Ocidente. A apropriação conservadora desvirtua o propósito original das artes liberais, que era o de formar cidadãos [na falta de um termo para aquela época] capazes de pensar por si mesmos e participar ativamente da vida pública [na falta de um termo adequado para a época], independentemente de dogmas. Em vez de promover a liberdade de pensamento, essa vertente pode restringir o escopo do conhecimento e da crítica, alinhando-se a uma agenda política e social específica.

 

Apreciação final

         As Sete Artes Liberais, em sua concepção original, oferecem um arcabouço para um tipo de formação humana, e que naquele contexto medieval permitia as referências necessárias para um tipo de formação que contrastava com os interesses iniciais da discursividade de poder da época. É claro que tal ideia é um olhar crítico sobre a época, não há ali, em leitura geral e até certo ponto superficial, um socialismo nos moldes do debate a partir dos séculos XIX e XX. Contudo, a tentativa de apropriação por parte de vertentes conservadoras, que buscam instrumentalizá-las para a defesa de uma visão de mundo restritiva e excludente, conservadora, representa um desvio de seu potencial emancipatório. Faz uma ligação direta ou mesmo projeta aspirações de hoje sobre aquela época, usando-a como elemento que abaliza a retórica de hoje, sem esboçar esse expediente, mantendo-o oculto, postulando ao contrário haver algo direto.  

Uma perspectiva socialista, ao contrário, reivindica uma apropriação das Artes Liberais em nossos dias como ferramentas essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Não se diz que tal prática era socialista desde a origem. O Trivium, com sua ênfase na gramática, lógica e retórica, fornece os meios para desconstruir narrativas opressoras, desenvolver o pensamento crítico e articular discursos de libertação. O Quadrivium, com aritmética, geometria, música e astronomia, oferece a compreensão das estruturas materiais do mundo e inspira uma visão de solidariedade e cooperação global, porque não revolucionária.

         Ao invés de serem privilégio de uma elite ou instrumentos de doutrinação, com até certo ponto era lá no medievo, as Artes Liberais, sob uma ótica socialista, devem ser universalizadas e democratizadas, tornando-se acessíveis a todos, pois quando observadas em suas definições, são ferramentas capazes de tornar as pessoas em protagonistas na esfera política. Elas são a base para uma pedagogia crítica que empodera os oprimidos, fomenta a consciência de classe e impulsiona a transformação social. Assim, as Sete Artes Liberais, longe de serem relíquias de um passado conservador, podem ser revitalizadas como pilares de uma educação verdadeiramente libertadora, capaz de formar indivíduos aptos a construir um futuro socialista. E por essa chave não só do interesse socialista, mas daquela ideia de liberalismo político que em termos ideais embalou a Maçonaria partidária da República Federal do Brasil nos fins do século XIX.


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