Resenha
MERLEAU-PONTY, Maurice. A Natureza: Curso do Collège de France. Texto estabelecido e anotado por Dominique Séglard. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Cídio Lopes de Almeida
[book summary for teaching purposes]
O texto apresenta excertos do curso de Maurice Merleau-Ponty no Collège de France, intitulado “A Natureza”, ministrado entre 1957 e 1960. A obra, que aprofunda teses anteriores do filósofo, como as de Estrutura do Comportamento e Fenomenologia da Percepção, busca fundamentar uma filosofia da história anti-idealista através da filosofia da Natureza. O curso explora a complexa relação entre o corpo, a liberdade e a história, argumentando que a liberdade se expressa através de uma situação corpórea, e discute extensivamente o conceito de Natureza em diversas tradições filosóficas, como a aristotélica, estoica, cartesiana e kantiana. Além disso, a análise examina as implicações filosóficas da ciência moderna, especialmente a física (conceitos de causalidade e tempo em Laplace, Einstein e a mecânica quântica) e a biologia contemporânea (noções de comportamento, instinto, Umwelt de Uexküll e a ontogênese em Driesch), contrastando o mecanicismo e o vitalismo com uma visão da Natureza como estrutura, totalidade e interser. O tema central perpassa a tentativa de definir um ser que não é pura coisa nem espírito puro, mas uma dupla natureza ou simbolismo, crucial para entender o organismo, a percepção e a intercorporeidade.
Anotações para fins didáticos sobre o livro
Esta resenha da obra de Maurice Merleau-Ponty, A Natureza, baseada nos cursos ministrados no Collège de France (1957 a 1960), visa fornecer um resumo abrangente para fins didáticos, focando na reinterpretação filosófica do conceito de Natureza e sua relação com o corpo, a ciência e a ontologia.
A obra é essencialmente uma transcrição de cursos que Merleau-Ponty utilizou para aprofundar teses anteriores (A Estrutura do Comportamento, 1942, e Fenomenologia da Percepção, 1945). O objetivo central é fundamentar filosoficamente uma filosofia da História anti-idealista através de uma filosofia da Natureza. Merleau-Ponty procura integrar o “ser natural” (aquilo que resiste à fenomenologia) dentro da própria fenomenologia, buscando uma “nova ontologia”.
O estudo está estruturado em três partes, correspondentes aos anos letivos.
1. O Conceito de Natureza (1956-1957)
Esta primeira parte consiste em um estudo das variações históricas do conceito de Natureza.
Variantes Históricas e Críticas
1. Concepções Finalistas Clássicas: Em Aristóteles e nos estoicos, a Natureza é vista como uma orientação para um tipo, ordem ou destino (teleologia). O estoicismo introduz a ideia de simpatia entre as partes do mundo.
2. A Natureza como Puro Objeto (Descartes): A Natureza é reduzida à extensão — um ser inteiramente exterior, feito de partes exteriores. Essa ontologia do objeto é retrospectiva, implicando que a conservação está contida na criação, tornando supérflua a ideia de finalidade. Contudo, Merleau-Ponty nota que Descartes se depara com a dificuldade de explicar o corpo humano (o composto alma-corpo) como uma máquina pura, levando-o a conferir-lhe atributos como indivisibilidade e unidade funcional, o que rompe com sua concepção da Natureza.
3. Kant e o Sujeito: Kant apresenta a Natureza duplamente: como o conjunto de todos os objetos dos sentidos e como o sistema das leis. A revolução copernicana kantiana é ambígua: o sujeito é o ponto de referência, tanto um fato fortuito (psicologismo) quanto um poder de construir (um naturante em nós).
4. O Idealismo de Brunschvicg: Brunschvicg radicaliza o humanismo, eliminando as distinções kantianas (dado/construído, Natureza/Liberdade). Ele insiste que as leis da Natureza são dadas históricas e não alcançam verdades eternas. Merleau-Ponty critica que, ao fazê-lo, Brunschvicg mascara a originalidade do “ser percebido pelo corpo”, que constitui as “âncoras primordiais do homem ao espaço”.
O Idealismo da Natureza (Schelling e Bergson)
A crítica ao objetivismo leva a filosofias que buscam uma interioridade na Natureza:
1. Schelling: Busca o pré-reflexivo e o “sujeito-objetivo”. O Eu e o ser vivente têm uma raiz comum no Ser pré-objetivo. A Natureza é concebida como um organismo, e o conhecimento filosófico deve ser uma “reflexão sobre o que não é reflexão”.
2. Bergson: Postula a duração como princípio de unidade da vida. O élan vital não é finalismo clássico (exterior) nem mecanicismo (soma de peças), mas uma operação natural criadora que se realiza na contingência da matéria, sendo simultaneamente abaixo e acima do finalismo.
O Sentido do Ser (Husserl)
A fenomenologia de Husserl, especialmente em textos tardios, desloca o foco do “objeto puro” (blosse Sachen) para o Lebenswelt (mundo vivido).
• Husserl reabilita a ideia da Natureza como algo que envolve o sujeito.
• A posição do corpo (Leib) é crucial: é o sujeito encarnado (Ich Kann) que serve de referência para a constituição das coisas.
• A Terra (Arche-originária) é a matriz originária e o solo da história, um tipo de ser que contém todas as possibilidades ulteriores.
2. A Ciência Moderna e a Ideia de Natureza (1957-1958)
Esta parte examina como a ciência moderna (física e biologia) contesta a ontologia cartesiana e quais são as implicações filosóficas.
Crítica à Ontologia Clássica
1. Laplace e o Determinismo: A visão clássica do universo é inteiramente extensiva e determinista, baseada no pressuposto de uma inteligência capaz de conhecer todas as forças e posições instantaneamente.
2. Mecânica Quântica (MQ): A MQ subverte a ontologia laplaciana. Ela mostra que o ser não é individualizado, mas sim de natureza genérica ou estatística (uma “teoria das espécies”).
O ato de observação e medida não apenas registra, mas cria uma existência individual em ato (a “redução” do pacote de ondas), vinculando o observador, o aparelho e o objeto numa realidade única. Isso leva a um “realismo primordial” ou “concepção participacionista”.
3. Relatividade e a Natureza do Espaço/Tempo: A física moderna nega o tempo e o espaço absolutos. O espaço é uma métrica, não uma realidade em si. A filosofia deve reconhecer que a física só faz “descobertas filosóficas negativas”, mostrando o que o espaço ou o tempo não são.
Whitehead e a Crítica da Substância
Whitehead rejeita a ideia de que o tempo se reduza a um “instante pontual” (point-flush) e o espaço à “localização única”.
• A Natureza é uma “concrescência”, não uma substância.
• Os “eventos” (acontecimentos) e não as substâncias são a base ontológica. O objeto é a maneira resumida de assinalar um conjunto de relações (propriedade focal) em uma “corrente de situação”.
• A “passagem da Natureza” (Aufhebung) indica que a Natureza não é um objeto de pensamento nem um sujeito, mas um princípio obscuro, um “algo” (something).
3. A Animalidade e o Corpo Humano: Natureza e Logos (1957-1960)
Esta parte explora a vida animal e culmina na análise do corpo humano como o lugar da junção entre physis e logos.
A Vida e o Comportamento Animal
1. Biologia Moderna (Coghill, Gesell): O organismo não é uma máquina, mas um sistema dinâmico que se desenvolve organicamente. Fenômenos como o gradiente e o Gestalt mostram que a totalidade não é redutível às suas partes. O comportamento é uma “fisiologia em circuito exterior”.
2. Uexküll e o Umwelt: O animal constrói seu próprio meio circundante (Umwelt), uma rede de relações seletivas entre o mundo percebido (Merkwelt) e as ações (Wirkwelt). Uexküll compara esse desdobramento a uma “melodia que se canta a si mesma”, onde a última nota (o fim) influencia a primeira (o começo).
3. Lorenz e o Simbolismo do Instinto: O instinto é uma atividade primordial sem objeto (objektlos), que se manifesta como um padrão de conduta específico (um a priori). A ritualização (o exagero mímico de atos instintivos, como no acasalamento) mostra uma estreita relação entre o instinto e o simbolismo.
O Corpo Humano: Arquitetônica do Ser
O corpo humano é abordado como o surgimento da Natureza no Ser.
1. Corpo como Carne (Estesiologia): O corpo não é um objeto nem um espírito que o habita. É a “Carne” (Chair), o sensível e o senciente em um só.
A experiência da mão tocante e tocada revela o corpo como um lugar de reflexão sobre si mesmo, um circuito com o mundo.
O esquema corporal é um macrofenômeno que totaliza as partes e as relaciona com o espaço exterior, funcionando como um sistema de equivalências intersensoriais.
2. Corpo Libidinal e Intercorporeidade: A estrutura estesiológica é libidinal, e a percepção é um modo de desejo. O corpo é vocação para o absoluto. A intercorporeidade (Einfühlung) com os outros e com os animais é uma “relação lateral” (Ineinander), onde o meu corpo é o “eco do interior” do outro.
3. Corpo e Logos (Simbolismo): O corpo humano é simbolismo em um sentido fundamental e expressivo. O Logos (linguagem) é uma “segunda natureza” ou “espírito bruto”. A linguagem e a percepção não são sistemas de convenções arbitrárias, mas se baseiam em um “sentido latente” ou “código tácito” que precede seus próprios motivos, emergindo das estruturas perceptivas.
4. A Gênese (Ontogenia e Filogenia): A análise de Driesch e da evolução (Simpson, Dacqué) reforça que o ser vivo não é explicado pela pré-formação ou pela causalidade linear, mas por um “ser de entremundo” (interser) ou “relevo ontológico”. O organismo é um ponto singular que se estrutura de forma “transversal e não causalidade longitudinal”. O homem, ao emergir na evolução, o faz sem ruído, utilizando o corpo como o “próprio gesto, exteriorizado, da reflexão”.
A obra A Natureza articula a crítica à ciência objetivista e ao idealismo, mostrando que a Natureza não é uma coisa pronta, mas uma dimensão (folha ontológica) que se revela no corpo encarnado e perceptivo, o qual, por sua vez, é a raiz do simbolismo e da história humana. Vale sempre lembrar, a leitura própria do livro é fonte de muitas outras ideias.
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