O Ideário de São Bernardo e a sua Influência na Arquitectura Militar Templária

O Ideário de São Bernardo e a sua Influência na Arquitectura Militar Templária

 

O artigo foi copiado de “Medievalista” uma revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Acesso no original é só clicar no link. Para fins de citação acadêmica, peço que sigam para o site original e o faça indicando aquela fonte. 

 

 

Nuno Villamariz Oliveira
IEM
“Sed et militamus in eis, tanquam in tabernaculis, prorsus violenti ad regnum. Denique militia est vita hominis super terram, et quamdiu militamus in hoc corpore, peregrinamur a Domino, id est a luce.”
“Aqui estamos, tal como os guerreiros sob a tenda de campanha, tratando de conquistar o céu por meio da violência. A existência humana sobre a terra é idêntica à do soldado e embora prossigamos este combate afundados em nossos corpos actuais, estaremos porém peregrinando ao Senhor, isto é, à Luz”.
São Bernardo – Sermão XXVI sobre o “Cântico dos Cânticos”
Entre os homens do período da História a que se convencionou chamar Idade Média existem poucos cuja reflexão se revele mais oportuna nos nossos dias do que a de São Bernardo. Antes dele a vida monástica é dominada pelas visões do Apocalipse e do Juízo Final. Com a experiência do Absoluto, num espírito de intensa afectividade, caracterizado pelo amor e pela contemplação do corpo flagelado de Cristo, o abade de Claraval anuncia um novo caminho para o Homem. Toda a sua vida é não só um exemplo de puro espírito contemplativo, algo que hoje podemos considerar paradoxal dado o poder que granjeou nos assuntos da Igreja e no panorama socio-político da sociedade medieval, como a sua figura é, com toda a propriedade, a chave no entendimento do carácter tradicional da experiência religiosa e mística, em claro confronto com a visão pragmática e “cientista” de alguns dialécticos do seu tempo. O historiógrafo normando Orderico Vital, seu contemporâneo, escreveu, a propósito da sua personalidade, que “um dia o mundo inteiro acordará cisterciense”[1].
O estudo de São Bernardo tem sido denso ao longo dos tempos, sobretudo desde o século XIX, abarcando pontos de vista muito diversos e aprofundados. A produção literária que suscitou permanece muito elevada no decorrer dos séculos, como podemos verificar pelos reportórios bibliográficos[2], cuja quantidade assinala também, desde logo, algo substancialmente qualitativo. São Bernardo é uma daquelas personalidades da História sobre as quais se constituíram extensas massas documentais, muito bem inventariadas, de vários autores, que apresentam diferentes tendências da pesquisa científica. Alguns destes assinalam uma ruptura significativa no entendimento do santo durante o ciclo de destruições e reconstruções característicos da Revolução Francesa. Porém, as primeiras edições das obras do abade de Claraval são datadas ainda do século XVII, através da acção de Horstius, em 1641, e Mabillon, em 1667, que nos seus prefácios assinalaram a necessidade de confrontar os escritos pseudo-bernardinos com aqueles cuja autenticidade era indiscutível, contribuindo para lhe atribuir uma aura de escritor e teólogo clássico. Mas já o século XIX veio a conhecer uma divergência de interesses gritante no que se refere à figura do santo. De facto, se, em 1819, na senda do ódio revolucionário às instituições religiosas, a abadia de Claraval é demolida e vendida pedra por pedra[3] —o caso de Cluny é idêntico, embora não tenha desaparecido toda a construção, num processo que decorreu entre 1810 e 1823—, em 1830 o Papa Pio VIII confirma o decreto da Congregação dos Ritos nomeando o abade de Claraval Doutor da Igreja.
A partir desta data, coincidindo com uma atmosfera de renovação católica —que será sentida sobretudo a partir dos finais do século XIX, em que o pensamento medieval se vê repentinamente revalorizado— a personalidade do santo vai constituir-se cada vez mais objecto de reflexão, proporcionando a sua imagem um alento inspirador de fé e de cultura. Todos se inclinam espontaneamente diante da sua autoridade espiritual, exacerbam a sombra ou a luz que fazem marcar os destinos, as personalidades, isto apesar da sua latente humildade e dos esforços que sempre fez para permanecer na sombra. Michelet, no seu célebre retrato do santo, não hesita em o confrontar com Pedro Abelardo[4], numa comparação que constituiu a base de muitas das investigações empreendidas até à actualidade. Diversas efemérides marcaram esse trajecto histórico, entre as quais se salientam: as diversas revistas de estudos cistercienses publicadas desde 1884[5]; as comemorações, em 1890, do oitavo centenário do seu nascimento; a celebração, em 1930, do centenário do seu título de Doutor da Igreja; e as notáveis manifestações, em 1953 e 1974, dos oitavos centenários do seu falecimento e da sua canonização, respectivamente.
Jacques le Goff, como outros autores actuais, vê no episódio entre o abade de Claraval e Abelardo um confronto no qual “o partido da santa ignorância opõe (…) a escola da solidão à escola do ruído, a escola do claustro à escola da cidade, a escola de Cristo à de Aristóteles e de Hipócrates”[6]. Este tipo de comparação tem servido para valorizar a obra do professor parisiense, que foi, para Paul Vignaux, o “cavaleiro da dialéctica”, primeira figura de proa da modernidade, relegando para segundo plano aquele que, na opinião de le Goff, foi um “grande inquisidor antes do tempo”[7]. Felizmente para a nossa pesquisa, vários têm sido, de igual modo, os autores que contribuíram durante o presente século para um esclarecimento mais preciso da vida e da obra de São Bernardo. Os trabalhos de Étiénne Gilson trouxeram à luz do dia o direito de o abade de Claraval ser considerado não apenas como um entusiástico autor espiritual de grande responsabilidade moral, mas também como um autêntico teólogo[8]. Por outro lado, a criteriosa investigação de Jean Leclercq, centrada na imensa tradição manuscrita dos escritos do santo, teve a particularidade de precisar as diferentes redacções das mesmas obras e trouxe um dinamismo renovado em torno da sua figura. René Guenon já o tinha considerado como o “último dos Padres da Igreja”[9] e guia“nos últimos círculos do Paraíso” dantesco[10]. Outros autores mais recentes corroboram essa opinião, casos de O. Rousseau[11] e E. Marcolini[12]. No que toca à História da Arte não se pode ignorar o êxito que o livro Saint Bernard – L’art cisterciende George Duby[13] teve para o grande público. Mas também não é possível, na mesma linha de investigação, esquecer a obra de P.Anselme Dimier, cujos trabalhos apontam caminhos em muitos aspectos ainda inexplorados[14]. Hoje em dia são mais significativas as vozes em torno do estudo do abade de Claraval. Citando Jean Leclercq, “se Bernardo é difícil de conhecer e, por certo, de amar, é por causa da complexidade da sua pessoa e da sua obra. E esse mistério, que continua a rodeá-lo, deverá estimular, não mais desanimar, uma pesquisa, tão objectiva quanto possível, do verdadeiro São Bernardo”[15].
Seria necessário dedicar todo um tratado para analisar este homem cuja oratória e poder de persuasão fazia agitar tudo à sua volta. Esse não é o objectivo desta reflexão, mas apenas focar um ponto pouco debatido da personalidade do abade de Claraval que se insere directamente no nosso estudo: a sua influência na arquitectura militar. No que se refere à História da Arte sempre foi reconhecido ao santo um papel fundamental na difusão da arte religiosa, pela concepção de uma nova arquitectura gótica[16]. Oposta à arte de Cluny está a de Cister, uma linguagem depurada, sem ornamentos ou formalizações excessivas, de que Alcobaça permanece entre nós como um dos mais paradigmáticos exemplos. Todavia, no que se refere à arte militar, parece desde sempre descurada a sua influência neste domínio, apesar do carácter guerreiro que, nalguns escritos, transparece da sua personalidade. Será absurdo pensar que terá influenciado a arquitectura dos castelos das Ordens Militares, sobretudo a arte templária? Podemos considerar o Templo e, por arrastamento, outras ordens religiosas militares como uma criação perfeita do cristianismo ocidental? Terá tido São Bernardo um papel inovador nesta conjuntura?
Para se entender o sentido atribuído pelo monge à arquitectura militar devemos, por um lado, recorrer à sua produção literária, e, por outro, tentar enquadrá-la no leque variado de referências que esses seus escritos recebem. Deste modo, é imprescindível compreender as posições que tomou acerca da legitimação da guerra e da sacralização limitada da violência. Jean Leclercq, no artigo “A atitude espiritual de São Bernardo perante a guerra”[17], abordou, numa brilhante síntese, o carácter de um homem de paz na sociedade agressiva do seu tempo. Através deste texto, são desenvolvidas as diferentes intervenções do abade de Claraval nos diversos tipos de confrontos, quer entre cristãos, quer sobretudo entre estes e todos os outros ­—muçulmanos, ou mesmo judeus e heréticos— em que esteve envolvido, como impulsionador ou apaziguador, nos últimos anos da sua vida. No conjunto destas situações, destacam-se as que envolvem o Islão, onde o cisterciense defende o recurso à guerra defensiva, mas sempre tendo como missão reduzir ao mínimo a violência e, como objectivo final, restabelecer a paz. Aquele autor conclui: “ele sentiu a dificuldade que existe em estar dividido entre as exigências do Evangelho e os dados próprios da cultura a que pertencia, e que o limitava. Houve também nele, por vezes, uma mescla de violência e de não-violência: ele dá sempre preferência à segunda[18].
Apesar do estudo intenso em torno de São Bernardo, muito pouco se sabe do conhecimento que ele teria da realidade muçulmana da época. Alguns autores sustentam que os místicos cristãos e muçulmanos, ao invés de serem tipos opostos, assentavam em paralelos tão flagrantes que permitem estabelecer influências, quer unilaterais quer recíprocas. A Península veio a constituir uma placa giratória entre esses mundos em confronto —muito por via da redescoberta das fontes hebraicas— a qual permitiu o estabelecimento de contactos pacíficos. Por paradoxal que possa parecer, diversos autores têm comparado, na Península, o clima de luta espiritualizada imprimido pelos Cistercienses ao do seu inimigo, os Almóadas provenientes do Norte de África. Segundo D. Maur Cocheril, “paralelamente ao movimento nascido da reforma gregoriana e que se concretiza no intransigente rigorismo de Cister, desenvolve-se no Magreb um movimento idêntico, sem que seja possível de explicar esse fenómeno pelos contactos de um com o outro (…) com mentalidades profundamente hostis, radicalmente incapazes de se compreender[19]. O mesmo autor defendeu que “os Almóadas africanos e os Cistercienses, com os Cruzados franceses, são os elementos estrangeiros que imprimem à Reconquista um carácter de guerra santa desconhecido dos autóctones, Cristãos e Muçulmanos[20]. Noutra perspectiva, Torres Balbas vai ao ponto de sustentar que a arquitectura religiosa cisterciense pode ter sofrido a influência almóada[21]. Como veremos, tais considerações interessam, em muito, a esta problemática.
O conhecimento do Islão no Ocidente medieval ter-se-à devido também a um relativo intercâmbio cultural entre europeus —sobretudo francos— e muçulmanos no Oriente, apesar de aí ser muito mais uma zona de guerra do que de transmissão de ideias ou de livros. Mas, no século XII, a Terra Santa já não é terra incognita. Muitos francos falavam o árabe, como Reinaldo de Châtillon ou Reinaldo de Sidon. No entanto, se exceptuarmos poucos exemplos peninsulares —quase sempre traduzindo obras filosóficas e científicas de textos originais gregos—, antes da acção premeditada de Pedro, o Venerável, os investigadores não têm encontrado qualquer tradução de livros da doutrina árabe para o latim ou o francês. O abade de Cluny foi, porventura em toda a Cristandade, o homem mais empenhado em substituir às lendas fantasistas de alguns seus contemporâneos uma imagem mais aprofundada do Islão e do seu fundador, Maomé. Tinha perfeita consciência da ignorância profunda que os europeus revelavam do credo muçulmano. O seu objectivo primordial era a defesa pacífica da Cristandade, lutando, no terreno intelectual, contra aquilo que considerava ser a “heresia sarracena”, para chamar deste modo os muçulmanos à verdadeira fé e preservar os crentes cristãos desse “contágio”[22]. Para tal reúne uma equipa de competentes tradutores encarregada de transpor para o latim os documentos autênticos referentes à vida do profeta, da sua doutrina e do livro sagrado do Islão, o Corão. Graças à sua determinação e à difusão que os clunisinos se encarregaram de fazer, os cristãos passaram a dispor de fontes seguras acerca da religião muçulmana. Chega inclusivamente a enviar ao abade de Claraval um apanhado histórico acerca do nascimento do Islão e da biografia do seu fundador, para o incitar a que, com base nestas informações, compusesse uma apologia anti-islâmica, à qual o destinatário não ousou responder. Depois de ter perdido a esperança que São Bernardo empreendesse tal tarefa, e após ter solicitado semelhante pedido a outros teólogos, ele próprio se propôs a tal tentativa[23].
A atitude do abade de Claraval  é difícil de compreender. Na verdade, a que se deverá o silêncio de um homem tão empenhado no confronto com o Islão na recusa em elaborar semelhante obra? Poderia o mosteiro de Claraval possuir um conhecimento prévio desses textos muçulmanos? Terá São Bernardo ocultado, dessa forma, o seu interesse —estritamente intelectual, como o do abade de Cluny— por esses escritos? Provávelmente nunca viremos a saber se a sua obra literária terá sido realizada tendo algum contacto com os textos dos seus inimigos espirituais[24]. Quanto ao fundador da ordem cisterciense, Estêvão Harding, de origem inglesa[25], sabemos que recorreu a sábios judeus para o ajudarem na redacção criteriosa da Bíblia de Cister. Esses intérpretes dominavam os textos hebraicos e, em especial, o Talmude, embora não se saiba se poderiam ler ou falar o árabe. Do que subsiste da biblioteca de Claraval, actualmente dispersa por Troyes e Montpellier[26], não é possível discernir se ela possuiria qualquer obra traduzida de fontes muçulmanas. A razão desta longa série de observações está relacionada com o conhecimento muito preciso que São Bernardo parece ter tido do Islão e da sua mística guerreira. O Elogio à nova Milícia, em que o abade de Claraval faz a apologia do combatente espiritual, asceta e cavaleiro, assemelha-se de facto ao guerreiro da jihad, o seguidor de Maomé, ele próprio um cavaleiro. Sabemos que o Templo teve como objectivo principal o combate pela defesa da Terra Santa, e que constituiu a resposta cristã à Crescentada, mas ainda pouco se tem investigado as influências que ele eventualmente terá recebido desta, mesmo por uma via de oposição. A expansão da fé através da espada é algo a que se assiste desde Constantino e a ela o nascimento do Islão e o fluxo das Cruzadas muito devem. No entanto, em ambos os casos, esquece-se por vezes que a persuasão exerceu um papel tão importante como o confronto armado. Neste sentido, como enquadrar o emprego da força na afirmação e difusão da verdade religiosa em vez da via menos belicista? A resposta parece advir do facto de o recurso à violência não poder deixar de se exercer quando estão em jogo determinadas circunstâncias fundamentais, como a defesa espiritual dos lugares sagrados, num paralelo com a atitude de Cristo perante os vendilhões do Templo.
Se para o Islão a guerra foi sempre entendida como uma necessidade inerente ao triunfo da sua causa —Maomé promete o Paraíso aos soldados mortos na jihad— para o Cristianismo das origens a recusa da força das armas e da violência foi total. O carácter pacifista era uma realidade nos primeiros séculos da história da Igreja, à imagem de Cristo, que se deixou submeter à autoridade do seu tempo, propagou o amor pelo inimigo e, por fim, preso pelos soldados romanos, não se defendeu e impediu a intromissão dos discípulos, deixando-se crucificar. No entanto, começou a impor-se, do lado dos homens da Igreja, uma nova concepção, baseada fundamentalmente em Santo Agostinho, na qual, mediante certas circunstâncias, como a da invasão de um território pelo inimigo, haveria lugar a uma guerra “justa”, para o recuperar e punir os criminosos. Esta atitude que emerge dos escritos do bispo de Hipona era baseada, ela própria, no conceito de guerra sagrada que emanava dos textos do Antigo Testamento, vindo a influenciar toda a teologia medieval e, sobretudo, São Bernardo que, como ninguém havia feito antes no Ocidente, veio a valorizar e sacralizar a função militar. O seu objectivo era, então, através de um combate honesto, devolver o território a Cristo, restabelecendo a sua herança, como se os cruzados fossem os novos hebreus em busca da terra prometida. Por isso, o abade de Claraval insiste que os cruzados devem realizar uma conversão interior, ascética e expiatória, antes de partirem para o Oriente. Do mesmo modo, ao dirigir-se aos Templários, permanentes cruzados em vigília, assegura-lhes que a morte de infiéis em batalha leal não é um homicídio, mas um “malicídio[27].
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Devemos igualmente tentar compreender o apoio que o santo vai dar à Ordem do Templo. A regra que redigiu para esta e o Tratado apologético sobre as “glórias da nova milícia”[28] que lhe dedicou demonstram as relações de São Bernardo com a Cavalaria. Se existe um domínio no qual o abade de Claraval esteja devidamente informado é o domínio cavaleiresco. Pelas suas origens na nobreza, ele era conhecedor do mundo dos senhores e dos cavaleiros. Acompanhou-os na sua adolescência, altura em que decide entrar para Cister, conservando ao longo da vida as suas amizades entre a aristocracia laica. Considera os monges como combatentes espirituais, e na sua escrita é fácil denotar um leque variado de imagens associadas à arte da guerra, em que não hesita em considerar Claraval um mosteiro fortificado, uma espécie de cavalaria transfigurada. No seu 3º Sermão da obra In Dedicatione Ecclesiae, o cisterciense compara essa sua casa, a Igreja, à fortificação do rei eterno fustigado pelos seus inimigos. Daí as alusões precisas aos muros, aos fossos, às armas defensivas e ofensivas, aos víveres que é necessário acumular para que o terreno do Senhor resista:
Irmãos, esta casa é uma fortificação de Deus, sitiada pelo inimigo. Todos os que jurámos sua bandeira e nos alistámos na milícia necessitamos de três coisas para defender esta praça: trincheiras, armas e víveres. Quais são as trincheiras? Escutemos o Profeta: Temos uma cidade forte; estão postas para a salvar muralhas e antemuros. A muralha é a continência e o antemuro a paciência. (…). O mesmo Salvador se converteu em muralha e antemuro da sua cidade. (…). Também devemos ter bem preparadas as armas, as armas espirituais, empunhando-as com a força de Deus; não apenas para resistir ao inimigo, mas para o atacar e derrotar com bravura(…)[29].
O abade de Claraval chega mesmo a estabelecer a analogia entre o mosteiro e o castelo como se se tratasse de uma única realidade:
Arrebatas a Cristo um magnífico castelo, se entregas Claraval a seu inimigo. Ele [Claraval] recebe cada ano excelentes rendas; há o costume de introduzir no seu campo fortificado um copioso espólio retirado aos inimigos. Ele tem uma inteira confiança na sua força. Aqui estão os que ele resgatou das mãos do inimigo, reunindo de todos os países: norte e sul, levante e poente[30].
São Bernardo não poderia ser mais eloquente. Os Sermões para a Dedicação da Igrejarevelam, de igual modo, uma visão teológica, na qual se associa a figura de Deus a uma cidade defendida por uma fortificação.
Tão guarnecida está a fortificação da cidade do Senhor que não existe o mais leve temor, contanto que actuemos fiel e valorosamente, isto é, que não sejamos traidores, cobardes, nem ociosos. São traidores os que tentam introduzir o inimigo na praça do Senhor, por exemplo, os difamadores, a quem Deus aborrece; e os que semeiam discórdias e fomentam escândalos. (…) … é um traidor quem pretende introduzir um vício qualquer nesta casa, e converter este templo de Deus numa cova de bandidos.
Graças a Deus há muito poucos desta espécie entre nós. Mas às vezes não falta quem se ponha a falar ao inimigo e faça um pacto com a morte; é dizer, fazer o possível por alterar a disciplina da Ordem, reduzir o fervor, alterar a paz ou ferir a caridade. Livremo-nos destes quanto pudermos, imitando Jesus que não se fiava neles. Asseguro-vos que embora agora os toleres, se não se emendam sofrerão muito em breve um juízo tão rigoroso quanto terrível é o mal que tramam[31].
Neste último parágrafo o abade de Claraval parece falar não apenas para os homens da igreja mas também, e de modo directo, para os próprios guerreiros[32]. Aliás, a guerra é, para ele, desenvolvida em vários locais. Um desses lugares de combate é o mosteiro, outro é o reduto defensivo, o castelo. Nas palavras de J. M. de la Torre, “a liturgia do monge, segundo São Bernardo, [tal como a do cavaleiro], deve ser uma busca autêntica, contínua e perseverante, numa atmosfera de combate[33]. A própria formação do abade de Claraval, iniciado no espírito da cavalaria, projectando um ideal de amor cortês através do culto da Virgem Maria, reflecte uma influência dos mitos e lendas do ciclo bretão e arturiano. Para René Guénon, ele é “o protótipo de Galaaz, o cavaleiro ideal e sem mancha, o herói vitorioso da “demanda do Santo Graal”” [34]. São Bernardo, monge da contemplação e da acção, inspirador não apenas da ordem cisterciense, mas também do Templo, assume uma dupla missão, quer no plano espiritual e religioso, contribuindo para uma Igreja mais purificada e ascética, quer no plano temporal, através do ideal templário e da pregação de uma nova Cruzada, para o Oriente e para o Ocidente peninsular, em lugares onde se firmava o Islão.
Neste ambiente de luta espiritual, compreende-se o empenho que o abade de Claraval demonstra em encorajar a Ordem dos Templários, que Hugues de Payns, seu primo, tinha fundado[35], uma estrutura militar de alma cisterciense, constituída por profissionais de armas encarregados da defesa dos Lugares Santos —juntando o combate com a oração. Através dela o abade de Claraval não pretende derramar o sangue dos opositores da fé cristã, mas atender à defesa da herança espiritual da Cristandade, a Terra Santa, ameaçada pelos ataques muçulmanos, impede que essa defesa se faça sem acudir às armas. Esta doutrina do perigo latente no lugar onde Cristo venceu pelo seu sangue levou São Bernardo a esgrimir com a sua pena o Elogio da Nova Milícia onde reconhece que a ele próprio, como religioso, lhe está vedado o emprego das armas. O carácter castrense dos Templários, a “militia” por excelência, traduziu-se numa nova atitude perante a guerra, associando-a directamente a uma forma diferente de encarar a vida monástica. Até à sua formação, as ordens religiosas cristãs no Oriente não se dedicavam a funções militares, estando a sua acção restrita ao apoio a peregrinos. O novo instituto nasce com o objectivo claro de defender o Reino Latino de Jerusalém, numa vivência pautada por um clima de guerra permanente contra os seus inimigos. Nesta conjuntura, após a queda de Edessa, em 1144, deve ser igualmente destacado o empenhamento pessoal do abade de Claraval na Segunda Cruzada. Esta nova acção da Cristandade, a que muitos chamam a Cruzada cisterciense[36], foi apresentada por São Bernardo como uma oportunidade especial de salvação para aqueles que tomavam a cruz, conseguindo transformar as reticências iniciais da aristocracia naquilo a que André Vauchez[37] designa por uma catarse colectiva, uma aventura do espírito, uma peregrinação santificadora.
No Tratado sobre as glórias da nova milícia, poderoso opúsculo apologético e teológico, São Bernardo utiliza uma linguagem crítica virulenta quando descreve os soldados orgulhosos e bem aparelhados, em contraste com os novos monges soldados, pobres, castos e obedientes. Encontramos de um lado esse exército que não é uma militia,mas antes uma malitia, feita de decadentes guerreiros de “cabeleiras longas, de escudos pintados e de esporas de ouro”. Ao invés, os cavaleiros de Cristo, que nada possuem de próprio, que nunca se aprumam, negligenciando a barba e o cabelo,“cobertos de pó, negros do sol que os abrasa e da malha que os protege”[38]. Também é interessante verificar que, nessa obra, São Bernardo compõe, como refere Jean Leclercq, um guia para os viajantes na Terra Santa: “Mais do que animar os guerreiros, ele conduz uma peregrinação”. Ele, ao viajar por toda a Europa, onde a sua presença era muitas vezes requerida, sempre foi, aliás, um peregrino pela Fé, um homo viator. Segundo a sua descrição —não confirmada na sua totalidade— os cavaleiros eram responsáveis por quase todos os lugares sagrados para os cristãos: o Templo de Jerusalém, Belém, Nazaré, o monte das Oliveiras, o vale de Josaphat, o Jordão, o Calvário e o Sepulcro. Sabe-se, no entanto, que a rota entre Jerusalém e Jericó, assim como o lugar do baptismo de Cristo no rio Jordão, estavam muito bem defendidos pelos Templários[39]. Com um estilo literário pujante, São Bernardo opõe a nova cavalaria, os Templários, à cavalaria secular, isto é, a todas as outras. Esta nova cavalaria conduz“um duplo combate, contra a carne e contra os espíritos da malícia espalhados nos ares”. Para o novo cavaleiro, “Cristo é a sua vida; Cristo é a recompensa da sua morte”. Percebemos, assim, que o abade de Claraval justifica o trabalho do soldado apoiado no ensinamento de Cristo, desenvolvendo a ideia de guerra defensiva em torno da Terra Santa, lugar que representa “a herança e casa de Deus”, ameaçada pelos infiéis[40].
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Para avaliarmos o papel de São Bernardo na arquitectura militar templária devemos deter-nos nas influências que esta vai receber dos seus contactos com o mundo islâmico e, noutra perspectiva, o simbolismo que o monge imprime à Cidade Santa de Jerusalém e, dentro dela, o lugar que, para ele, representa o que ela contém de mais sagrado: o Templo. Mas numa primeira aproximação, podemos afirmar que a influência do abade de Claraval na arquitectura dos cruzados faz-se sentir, sobretudo, na estruturação idealizada da cavalaria[41] e naquilo a que muitos designam poragostinianismo político. Veremos de que modo estes modelos se reflectem na arte militar.
A implantação das Ordens Militares na Península e no Oriente é uma projecção natural dos conceitos cristãos de peregrinação —armada— e de guerra religiosa. O contacto com o ribat muçulmano, centro militar e religioso, fortificado, instalado nas fronteiras do Islão, obrigou os europeus a reformularem os seus métodos de combate. O serviço noribat, voluntário e temporário, era um acto de ascese e inseria-se no contexto da jihad, a guerra santa islâmica. É possível que esta instituição, anterior à criação das milícias cristãs, tenha recebido —ao nível da arquitectura dos seus enclaves— uma influência das fortificações bizantinas. Os elementos destas estruturas militares muçulmanas estabeleciam-se em locais geralmente de difícil acesso e bem defendidos, de acordo com o fervor místico inerente ao dever da jihad. Segundo Alan Forey, a hipótese de fazer derivar as fortificações destas milícias cristãs “da imitação do instituto muçulmano do ribat —um castelo de fronteira guarnecido em parte por voluntários— não é convincente”[42]. No entanto, D. Maur Cocheril, baseado nos trabalhos de Levy-Provençal e C. Marçais, salientou que alguns castelos muçulmanos da Península, casos, entre outros, de Miravet, Calatrava ou Juromenha, passaram a ser possessões de Ordens Militares cristãs[43]. Também outros autores mais recentes, como Alain Demurger, defendem essa aculturação, baseados em novos estudos antropológicos que comprovam esse tipo de influências, sobretudo no caso da Confraternidade de Belchite, em Aragão[44]. Assim, tem sido muito debatida a influência do mundo muçulmano na arte de edificação de castelos pelos cristãos, a Ocidente e a Oriente, e particularmente naqueles que eram pertença de Ordens Militares, parecendo existir fortes semelhanças de identidade entre os cavaleiros de ambos os credos, pelo menos durante os primeiros tempos das Cruzadas. No que se refere aos Templários, evoluíram para um modelo de monaquismo mais de acordo com os ideais cristãos, respondendo a uma nova atitude de encarar a defesa da Cristandade, mas ainda pouco se sabe efectivamente sobre os seus contactos com os representantes da religião islâmica.
Nesta problemática, devemos procurar compreender a que nível São Bernardo pode ter actuado na definição de linhas gerais para a arquitectura da Ordem do Templo. No que toca ao simbolismo da guerra, a Idade Média sempre recolheu dois importantes nomes da antiguidade romana, Vegécio e Vitrúvio, autoridades indiscutíveis sempre presentes na edificação das estruturas militares medievais. Esta tradição, com suas técnicas e estratégias, foi corrente na Europa sobretudo devido à obra de Vegécio Epitome de re militari. Por outro lado, o simbolismo da arte da edificação remonta a Vitrúvio e à sua teoria da arquitectura, embora durante o período medieval as suas ideias fossem veiculadas mais através de uma tradição literária do que pela transmissão da capacidade técnica ou de pormenores construtivos. Não se pode, porém, esclarecer com segurança a presença dos escritos de Vegécio ou de Vitrúvio no abade de Claraval[45]. Podemos suspeitar que alguns preceitos de Vegécio terão tido eco, como a primacia da sapientia sobre a fortitudo[46], fazendo alusão às vantagens de estratégias diplomáticas em batalhas campais, de modo a evitar atrocidades. Vitrúvio, por outro lado, no seu livro De Architectura Libri Decem, trata de todas as facetas da arquitectura, desde a mais simples técnica construtiva à cosmologia astrológica, contribuindo para a noção de que a Arte é o resultado de um processo mágico. O teórico romano desde sempre foi considerado a máxima autoridade em tudo o que dizia respeito à arquitectura, tendo o seu simbolismo da edificação exercido influência em São Bernardo, sobretudo pela projecção da sabedoria na harmonia e beleza da arte cisterciense.
É comummente reconhecido o papel activo que o abade de Claraval teve na criação do modelo de arquitectura cisterciense, embora, de facto, não possamos saber até onde chegaria a sua supervisão; também não existe dúvida de que o estilo que se desenvolveu sob a sua direcção é um dos principais acontecimentos da história da arquitectura medieval. Segundo Étiénne Gilson, ele “nunca baniu os quadros, os vitrais ou os capitéis historiados das igrejas frequentadas pelo povo, onde a mais simples devoção podia utilmente se apoiar nessas imagens. Mas ele mostrava-se inflexível no ponto em que essas obras distraíam os religiosos sem poderem favorecer a pureza espiritual da sua contemplação[47]. Apesar de nunca ter escrito nenhum tratado nessa área, sabemos da atenção que São Bernardo revela pela construção e decoração, preocupando-se com o mais insignificante pormenor. De igual modo, entendemos que não se deve excluir o seu interesse pela arquitectura militar, para a qual poderá ter contribuído através de algumas directrizes, à semelhança da sua acção na arquitectura religiosa[48]. Estando por estudar o seu papel nessa área, julgamos, no entanto, que, no ponto de vista da sua mentalidade, os indícios da sua presença podem ser encontrados mais facilmente nos temas que se relacionam com a ideia da defesa dos Lugares Santos. Por isso, mais do que a tratadística vitruviana, as referências a Santo Agostinho e, sobretudo, ao Livro terão exercido —neste caso como em todos os outros— a maior das importâncias. Conforme referiu, de um modo magistral, Georges Duby, “toda a arte, para São Bernardo, baseia-se numa palavra. A Palavra. De Deus”[49].
Incidiremos agora na importância espiritual que Jerusalém ocupa, como tema central, no pensamento do cisterciense. O tema da Cidade Santa como reduto defensivo atravessa toda a Idade Média[50], na qual a urbe celestial aparece muitas vezes associada ao castelo ou palácio fortificado do Graal. O Cântico dos Cânticos já associava a figura da Virgem com a imagem espiritualizada de um castelo —por vezes descrita como a hierosolimitana “Torre de David”. Embora o castelo como sistema defensivo seja uma tipologia arquitectónica com antecedentes que se perdem na noite dos tempos, a visão teológica de São Bernardo acerca da “fortificação divina”[51]também vai encontrar eco nas Sagradas Escrituras e em toda a tradição cristã, sobretudo através de Santo Agostinho[52], associando-a a Jerusalém. Se em muitos lugares do Ocidente e do Oriente as diferenças entre os castelos e as urbes são reduzidas, por vezes, as próprias cidades estão completamente circunscritas por muralhas. A tradição judaico-cristã terá contribuído de modo significativo para a formulação dos conceitos medievais de cidade ideal e de castelo. Esse processo terá sido desenvolvido de forma espiritualizada, centrando-se em torno do arquétipo da cidade santa de Jerusalém, das suas muralhas e do seu Templo, com os seus elementos simbólicos e as suas conotações mágicas. Em síntese, a Cidade Santa era entendida, por um lado, como uma representação alegórica da Igreja Cristã e, por outro, como uma representação anagógica da Jerusalém Celeste[53].
A Cidade Santa é o principal símbolo topográfico associado a combates utilizado por São Bernardo, para expressar o sentido antropológico da luta espiritual. Segundo J. M. de la Torre o mosteiro é, para ele, “uma cidade-refúgio, um castelo, fortificado com torres, ameias e seteiras. Coincide com Jerusalém, paraíso de delícias e terra fecunda”[54]. Mas o simbolismo da urbe terrena está, contudo, carregado de uma ameaça. É o perigo que lhe advém dos homens profanos que nela residem e dos ataques do exterior. O abade de Claraval não concebe a cidade santa sem a sua grande opositora, Babilónia, por vezes o Egipto ou mesmo Paris[55]. Para ele, entre as duas cidades a guerra é constante[56]. São Bernardo, mais uma vez, segue a tradição dos Padres da Igreja[57], como Ireneu, Teófilo de Alexandria ou Orígenes e, sobretudo, as palavras de Santo Agostinho. Para o bispo de Hipona a Jerusalém celeste é a esposa de Cristo, a Cidade de Deus. Ele “projecta o símbolo do combate na história humana, radicalmente trágica com a sua teologia do tempo através das tensões entre as “duas cidades”[58], em que se encontra “a vida humana em utopia e esperança[59]. O abade de Claraval enquadra a sua eclesiologia monástica, que é também uma idealização guerreira, através destes símbolos topográficos de Jerusalém e Babilónia. Esta última representa os deuses pagãos, a desordem, a maldade, lugar “do domínio e triunfo transitório do mundo material e sensível[60], cujo ambiente luxuriante é antro de homicidas e prostitutas sagradas que, nos seus jardins suspensos, são um verdadeiro insulto à miséria humana. Jerusalém terrestre é, para ele, o espaço místico do Homem e da Igreja ameaçados ou prisioneiros, em guerra permanente.
Neste contexto, devemos salientar novamente as palavras de J. M. de la Torre ao referir que o cisterciense utiliza o “termo guerra, que não é latino, mas sim de raiz germânica, distinguindo-o de “bellum”” [61]“Guerra, de “werra”, “wehr”, tem um sentido essencialmente defensivo e de repulsão violenta” (…) “uma luta à mão armada entre duas partes” [62]As forças de que o cristão dispõe [para a guerra] são a fé, a esperança e a caridade[63]. “Na perspectiva da fé, todo o crente é um “combatente”, como Jacob, um “libertado”, como Daniel, Noé e Job, e um “sacerdote” (…) como Moisés, Aaron e Samuel”[64]. Mas, acima de todos, Jesus Cristo assume-se como paradigma do vitorioso combatente e, por isso, o monge é sempre um seu soldado[65]. O abade de Claraval retira diversos sentidos da espiritualidade monástica para os projectar no ambiente de uma sociedade guerreira, cuja ética profana privilegiava os valores militares. O seu apelo à luta armada —e à sacralização da violência espiritual— resulta, no contexto do Laude, da necessidade de defender o Templo e a Cidade Santa dos não crentes e, ainda, de proteger os peregrinos cristãos no Oriente. Mas essa luta sem tréguas tem um objectivo fundamental: a esperança de poder habitar a Jerusalém Celeste. No final da sua vida, Suger concebeu uma nova cruzada, comandada por São Bernardo. Porém, a morte do abade de Cluny impediu essa investidura. Nunca saberemos o que a história nos reservaria se tal tivesse acontecido. São Bernardo nunca enfrentou directamente o perigo muçulmano. O que de certo sabemos é que o monge de Cister também acabaria por falecer em 1153, com o pensamento centrado na defesa de Jerusalém, constantemente ameaçada.
Por último, é importante reflectirmos ainda sobre o valor atribuído por São Bernardo ao Templo de Jerusalém. No século XII, as alusões aos edifícios no Monte do Templo surgem muitas vezes confundidos pelos europeus, numa mentalidade que associava a Cúpula do Rochedo a uma réplica do segundo Templo, destruído em 70 d.C., ou mesmo ao primitivo Templo de Salomão. A itineraria das peregrinações e as crónicas dos cruzados referem frequentemente a Cúpula do Rochedo como o Templo do Senhor (Templum Domini) e a Mesquita de Al-Aqsa como o Templo de Salomão (Templum Salomonis). Os autores medievais, seguindo as interpretações de S. Paulo e a tradição cristã, atribuíram desde muito cedo uma importância maior ao Templo do que ao Santo Sepulcro[66]. A profecia de Ezequiel era particularmente reveladora desta acepção ao descrever que o templo messiânico se encontrava em Jerusalém[67], apresentando uma descrição completa desse edifício, dos seus materiais e medidas. O primeiro Livro dos Reis descreve o santuário em forma de cubo, enquanto no segundo Livro das Crónicas ele está definido segundo um quadrado. Nos escritos atribuídos ao apóstolo e evangelista São João, a Jerusalém Celeste, prefigurada no Templo de Salomão, apresenta forma quadrada, simultaneamente revestindo a forma de cubo[68]. O capítulo 21 do livro do Apocalipse faz uma referência a esta cidade, descrevendo a sua origem celeste, os seus altos muros e as suas doze portas. No início do séc V, também Santo Agostinho, no Livro IV do seu tratado De Trinitate, traçava um paralelo entre aaedificatio do Corpo de Cristo e do Templo de Jerusalém.
A reconquista para a Cristandade do Monte do Templo coincidiu com um período de grande especulação monástica acerca do seu próprio significado espiritual. Na continuidade de nomes como Santo Agostinho, Gregório Magno e Beda, o Venerável[69], alguns cistercienses, como Aelred de Rievaulx, atribuíram ao Templo a imagem de Cristo e da Sua Igreja. Mas foi São Bernardo que, para além de desenvolver uma interpretação espiritual do Templo como sinal de contemplação, a complementou com a necessidade de se atender à defesa da Jerusalém terrestre. O abade de Claraval escreveu frequentemente sobre o Templo nas suas exortações à vida monástica. Este tema já era, aliás, apresentado por S. Paulo na Iª Epístola aos Coríntios[70], uma das passagens das Escrituras que o cisterciense mais admirava, em que o apóstolo identificava os corpos dos cristãos como templos do Espírito Santo. Para o cisterciense, apesar de os monges não pegarem em armas materiais defendiam o Templo, a fortaleza celeste, através do seu modo de vida ascético. Como soldados do exército de Cristo que empreendem a guerra a partir do interior do Templo, o Seu corpo. Para o abade de Claraval, os Templários repetiam, através da sua acção, o gesto de Cristo ao expulsar do Templo os vendilhões que o profanavam. Assim se compreende a urgência de uma ordem militar homónima, sobretudo a quem entendia que a manutenção do Templum Domini era de fundamental importância para que o novo ideal sobrevivesse e florescesse no Ocidente.
Um dos autores que dedicou mais estudos acerca do esoterismo cristão e ao significado espiritual do Templo e das diversas implicações de natureza teológica que tal assunto atravessa ao longo da História foi Henry Corbin. Reflectindo nas tradições espirituais das Religiões do Livro, escreveu uma colectânea de textos que designou por “Templo e Contemplação”[71]. A propósito da visão de Ezequiel do Templo celestial, considera que “os defensores da Cidade Santa estão defendendo uma Imago Templi que congrega ambos os Templos celestial e terrestre, e juntam o céu com a terra”, estabelecendo o paralelo entre ela e a milícia templária: “uma conexão indissolúvel é estabelecida entre a Imago Templi e a cavalaria templária nas suas múltiplas formas. A Imago Templi polarizou a tradição esotérica do Ocidente, e isto é também porque a imagem da cavalaria templária —da Ordem do Templo— permanece indissoluvelmente ligada ao conceito de cavalaria iniciática[72]. Referindo-se a São Bernardo, observa que o inspirador desta milícia considerava que o Templo deveria, em primeiro lugar, ser construído no coração, enfatizando, deste modo, o papel dos seus membros como construtores. Por fim, ao escrever sobre a Cúpula do Rochedo[73], protótipo dos edifícios religiosos da Ordem, associa-a com a Imago Templi, que é, para ele, a consciência espiritual do Ocidente[74].
Como foi salientado por Thomas Renna[75], muitos historiadores, ao falarem da visão bernardina do Templo, referem quase exclusivamente o Laude Novae Militiae, esquecendo a interrelação que existe entre esta obra e toda a visão monástica do seu autor. Se os monges cistercienses são, para ele, as figurações terrenas dos anjos, os cavaleiros do Templo são, pela mesma razão, os alter-egos dos monges no mundo material. Os primeiros defendem o Templo com as suas orações, tal como os segundos o defendem com as suas espadas[76]. Para São Bernardo, uns e outros, Cistercienses e Templários, estavam prefigurados no Antigo Testamento. Ele foi o último autor monástico a integrar o Templo de Jerusalém na visão hierarquizada da sociedade cristã. No tratado aos Templários este edifício é enaltecido num capítulo próprio[77] que contém, mais do que um hino à Cidade Santa, uma oportunidade para valorizar a sua defesa. Esse objectivo não foi conseguido, nem com a implementação da terceira e quarta Cruzadas, em cujas apologias o lugar do Templo hierosolimitano aparecia apenas como mais um símbolo de veneração, como o Santo Sepulcro ou o Calvário. Com a queda dos reinos latinos do Oriente, o Templo —e com ele Jerusalém—, enquanto imagem da cavalaria idealizada, nunca mais constituiria, tal como havia acontecido na Cruzada cisterciense, um sinal de esperança e um estímulo de fé.
Seguro de um mundo de certezas superiores, São Bernardo exprimiu uma tradição de valor inigualável que se reflectiu, talvez como com nenhuma outra figura da História, nos mundos monástico e militar do Ocidente. A escrita do doutor cisterciense comporta uma constelação de sentidos da qual emana uma teologia plurissignificante. A sua interpretação é exigente não apenas pelos textos em si mas por aquilo que através deles transparece do seu imaginário. Tanto quanto nos for possível, iremos averiguar até que ponto essa ascendência mental se verifica no contexto dos castelos templários em Portugal, e se ela é ou não pertinente. Apesar das pesquisas e dos extensos reportórios bibliográficos acerca do abade de Claraval, existem ainda caminhos inexplorados em torno da sua figura. Pensamos que a sua influência na arquitectura militar é um deles. Sem termos as suas certezas, talvez nada mais se justifique, para terminar esta exposição, do que citar as palavras de Jean Leclercq: “Bernardo de Claraval é um mundo que nunca se acaba de explorar”[78]
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[1] A obra Histoire ecclésiastique deste monge, datada de 1142, é fundamental para o conhecimento da vida política e religiosa dos séculos XI e XII na Europa e, em particular, da Ordem de Cister. Cf. C. E. Soveral, Prólogo da tradução do Elogio da nova milícia, Porto, 1990, p.7.
[2] Cf. L. Janauschek, Bibliographia bernardina; J. de la C. Bouton, Bibliographie bernardine (1891-1957); E.Manning, Bibliographie bernardine (1957-1972).
[3] Cf. M. M. Miguet, “La démolition de l’église abbatiale de Clairvaux”, Histoire de Clairvaux. Actes du Colloque. Juin 1990, Bar-sur-Aube, 1991, pp. 231-242.
[4] V. Histoire de France (nouvelle édition), t.2, Paris 1852.
[5] V. Revue bénédictine (fundada em 1884); Cistercienser-chronik (1889); Collectanea ordinis cisterciensium reformatorum (1934, passando em 1965 a Collectanea cisterciensia); Analecta sacri ordinis cisterciensis (1945, passando em 1965 aAnalecta cisterciensia); Cistercium (1949); Cistercian studies (1965).
[6] Cf. Les intellectuels au Moyen Âge, Éditions du Seuil, Paris, 1957. Vd. tb. edição portuguesa — Os intelectuais na Idade Média, Ed. Gradiva, Lisboa, 1990, p.40.
[7] Idem, p.62.
[8] Cf. La Théologie mystique de saint Bernard, Paris, 1934.
[9] V. Saint Bernard, Paris, 1929. Guénon retoma aliás, a classificação de Mabillon:“ultimus inter Patres, primis certe non impar”.
[10] L’esotérisme de Dante, Paris, 1925.
[11] Cf. “S. Bernard, le dernier des Pères” in S.Bernard théologien, pp.300-308.
[12] Cf. “San Bernardo di Chiaravalle (1090-1153), l’ultimo dei Padri” in Civiltà cattolica(1990), pp.220-231.
[13] V. Ed. Flammarion, Paris, 1979. Sobre esta obra é interessante confrontar a opinião de D.Maur Cocheril em “Quelques remarques sur “Saint Bernard et l’art cistercien”” in Collectanea cisterciensia 43, 1981, pp.377-388.
[14] V. Mélanges à la mémoire du Père Anselme Dimier, 3 tomos de 2 volumes (dir. B. Chauvin), Pupillin, 1982-1988.
[15] Cf. Bernard de Clairvaux, Ed. Desclée, Paris, 1989.
[16] Alguns autores, como recentemente Pierre Dalloz, têm feito um elogio à arquitectura religiosa inspirada por São Bernardo. Cf. P. Dalloz, “L’architecture de S. Bernard” in Collectanea cisterciensia, 42, 1980, pp.36-51.
[17] Cf. “L’attitude spirituelle de S. Bernard devant la guerre” in Collectanea cisterciensiaRevue de spiritualité monastique, T. 36, 1974, nº3, pp.195-225.
[18] Ibidem, p.225.
[19] Cf. M. Cocheril, “Essai sur l’origine des ordres militaires dans la Péninsule Ibérique” in Collectanea ordinis cisterciensium reformatae, t. XXI, 1959, p.317.
[20] Ibidem, p.328.
[21] Cf. L. Torres Balba, “Huellas de arte almohade en la arquitectura cisterciense” in ,Al-AndalusUna fase de austeridad artistica en el cristianismo y en el Islam Occidental — Cistercienses y Almohades, vol. XXI, fasc. 2, 1956.
[22] Cf. M-T. Alverny, “Deux traductions latines du Coran au Moyen Age” in La connaissance de l’Islam dans l’Occident médiéval, Mariorum, Narfolk, 1994, pp.70-86.
[23] Os Cruzados vinham a aperceber-se, aos poucos, que Alá não era um ídolo mas um Deus transcendente. Este perigo iminente para os fundamentes do Cristianismo terá levado à redacção, pelo abade de Cluny, do seu tratado Contra sarracenos, escrito no fim da sua vida, embora incompleto apesar do auxílio do seu secretário. No prefácio desta obra apologética o autor considera a religião muçulmana uma heresia comparável a outras que foram combatidas pelos Padres da Igreja.
[24] Das relações entre cistercienses e populações de diferentes credos o que se tem como certo é a presença da Ordem na Península e na Terra Santa. No Oriente, sabemos do seu estabelecimento em Belmont, junto de Tripoli, em 1157, e perto de Jerusalém, em 1161, mas este facto não permite aventar do interesse desses monges nas obras sagradas do Islão. Em ambos os casos, porém, a morte de São Bernardo já teria ocorrido.
[25] As relações entre a Ordem de Cister e a Igreja de Inglaterra eram estreitas, como demonstra a existência, nesse país, de três abadias cistercienses. Por outro lado, a abadia de Pontigny recebeu três ilustres prelados de Cantuária, entre os quais Thomas Beckett, durante o seu exílio. Cf. P. Dalloz, “L’architecture de S. Bernard” in Collectanea cisterciensia, 42, 1980, p.44.
[26] Cf. J.-P. Bouhot, “La bibliothèque de Clairvaux” in Bernard de Clairvaux – Histoire, Mentalités, Spiritualité, Éditions du Cerf, Paris, 1992, pp.141-153.
[27] Cf. São Bernardo, “Laude novae militiae” in Obras completas de San Bernardo, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1993, Vol. I, pp.496-543, sobretudo pp.502-505.
[28]Ibidem. O prólogo deste Tratado parece estar assinalado pelo simbolismo do número três (à semelhança do terceiro Sermão para a Dedicação da Igreja):
Uma, e duas, e três vezes, se me recordo, me pediste, caríssimo Hugo, que escreva para ti e para teus companheiros um sermão exortatório.
A visão triádica do Abade de Claraval está também presente nos seus três graus de Verdade (Humildade, Compaixão e Contemplação), nos três modos de conhecimento (a opinião, a Fé e a Inteligência) e nos três tipos de homens, a saber: em primeiro lugar, os que têm “in recto corpore curva anima”; outros “in curvo corpore recta anima”; e, por fim, “in recto corpore recta anima”. Cf. C. E. Soveral, Prólogo da tradução do Elogio da nova milícia, Porto, 1990, pp.3-4.
[29] Cf. In dedicatione ecclesiae, 3;1 in Obras completas de San Bernardo, Vol. IV, pp.574-621. Dado os anacronismos do tradutor, nomeadamente ao transcrever a palavra baluarte em vez de antemuro, optámos por introduzir algumas correções no texto.
[30] Ibidem.
[31] Ibidem.
[32] Embora ele se refira aqui aos monges, parece falar igualmente para os cavaleiros, talvez pressagiando, sem o saber, um certo desleixo que a Ordem do Templo viria a padecer, e o seu fim trágico.
[33] Cf. J. M. de la Torre, “Talante sapiencial de las sentencias bernardianas a la luz de la escatologia”, op. cit., p.29. Vd. tb. in Dedicatione ecclesiaeop. cit.
[34] Cf. O Esoterismo de Dante, ed. Vega, Lisboa, 1978, p.99.
[35] Este primeiro Mestre da Ordem representa, aliás, o espírito ascético e místico do Norte de França, isto é, a vincada influência cisterciense, numa altura em que, sobretudo nos primeiros anos após a sua fundação, o Templo era encarado mais como uma instituição religiosa que guerreira.
[36] Ver, entre outros, a excelente colectânea The second crusade and the cistercians, ed. Michael Gervers, St. Martin’s Press, Nova Iorque, 1992.
[37] Cf. “Bernardo di Chiaravalle” in “, Le Crociate – L’Oriente e l’Occidente da Urbano II a san Luigi (1096-1270), Ed. Electa, Milão, 1997, pp.155-157.
[38] Laude novae militiae, 3;7.
[39] Cf. J. Folda, The Art of the crusaders in the Holy Land, 1098-1187, Cambridge University Press, Nova Iorque, 1995, p.393.
[40] Cf. J. Leclercq, “L’attitude spirituelle de S.Bernard devant la guerre” in Collectanea Cisterciensia, Revue de spiritualité monastique, T. 36, 1974, nº3.
[41] A interpretação ética de São Bernardo acerca da Cavalaria irá perdurar por muito tempo, vindo a influenciar individualidades como Raimundo Lúlio ou São Bernardino de Siena.
[42] Cf. “Gli ordini militari e la difesa degli stati crociate” in “, Le Crociate – L’Oriente e l’Occidente da Urbano II a san Luigi (1096-1270), Ed. Electa, Milão, 1997, p.253.
[43] Cf. M. Cocheril., “Essai sur l’origine des Ordres Militaires dans la Péninsule Ibérique” in Collectanea ordinis cisterciensium reformatae, t. XXI, 1959, pp.244-248.
[44] Cf. Vie et mort de l’ordre du Temple, Paris, Éditions du Seuil, 1985, (2ª ed. 1989) pp.38-39.
[45] Juan Maria de la Torre sustenta que ambos estão claramente presentes na obra do cisterciense. Cf. “Talante sapiencial de las sentencias bernardianas” in Obras completas de San Bernardo, Vol. VIII, p.13.
[46] Ibidem, p.13.
[47] Cf. E. Gilson, Saint Bernard — Un itineraire de retour a Dieu, Ed. Cerf, Paris, 1964, p.14.
[48] Vale a pena, nesta circunstância, recordar a citação que, a este propósito, fez Georges Duby do abade de Claraval: “… ele se empenha, ao escrever, em fazer corresponder o próprio texto e todo um jogo de números, número de linha na página, número de sílabas na frase, que desvela e prolonga a significação profunda de certas palavras, assim como exige de seus ouvintes, para chegar até ao centro oculto do seu discurso, um esforço de análise, de decifração, de glosa, análogo ao que exige a “lectio divina”, assim também considera evidente que o edifício seja também objecto de um comentário, contenha um sentido, uma hierarquia de sentidos articulados e seja ao mesmo tempo figuração simbólica e equivalência aritmética da Escritura. Para ele, como para todos os monges, o procedimento inicial do espírito é atravessar as aparências externas de uma mensagem”Cf. Saint Bernard et l’Art Cistercien, ed. Flammarion, Paris, 1979, (ed. bras. Liv. Martins Fontes, São Paulo, 1990, p.68).
[49] Cf. Saint Bernard et l’Art Cistercien, ed. Flammarion, Paris, 1979, (ed. bras. Liv. Martins Fontes, São Paulo, 1990, p.67).
[50] Desde sempre existiram parentescos entre os recintos amuralhados e as cidades. A Antropologia e a História das Religiões revelam-nos que as defesas (fossas, labirintos ou muralhas) dos lugares habitados eram dispostas a fim de impedir a invasão dos demónios e das almas dos mortos mais do que o ataque dos humanos. Os muros das cidades eram consagrados ritualmente como uma defesa contra estes inimigos. Cf. M. Eliade, Tratado de História das Religiões, Edições Cosmos, Lisboa, 1977, p.440.
[51] O simbolismo do cisterciense acerca da imagem espiritualizada do castelo veio a influenciar diversos autores, dos quais se destacam: Robert de Grosseteste, com o seu “Chateau d’amour”; Santo António, ao associar a figura da Virgem a uma torre fortificada; e Santa Teresa de Ávila, na sua obra “Castelo interior” ou “Moradas”.
[52] O bispo de Hipona é, em toda a Idade Média, um dos principais Doutores da Igreja e aquele que mais influenciou o pensamento político na tentativa de ordenar a sociedade. As doutrinas papais de Inocêncio III a Bonifácio VIII podem resumir-se àquilo que tem sido designado por “agostinismo político”, no qual as autoridades temporais se devem submeter à autoridade eclesial. A construção política de Santo Agostinho, elaborada na sua obra A Cidade de Deus, estipula o que deve constituir o pensamento e a acção da Igreja à frente das autoridades temporais. Este clima de domínio do espiritual sobre o temporal está na origem das fracturas na Cristandade desde o tempo de São Luís a Filipe, o Belo. A partir deste rei, que, como se sabe, foi responsável pela supressão dos Templários, passou a vigorar o chamado “aristotelismo cristão”.
[53] Cf. N. Housley, “Jerusalem and the development of the crusade idea, 1099-1128”in The horns of Hattin, Ed. B.Z. Kedar, Jerusalem, Yad Izhak Ben-Zevi, Londres, Variorum, 1992, pp.28-29.
[54]  J. M. de la Torre, op. cit., p.15.
[55] O clima de hostilidade aos meios citadinos por parte de alguns elementos da Igreja começava a contrastar com a crescente urbanização do Ocidente. Segundo Paul Zumthor, “para Bernardo de Claraval, Paris é Babilónia, a infame, mas aos olhos de Philippe de Harvengt (que na verdade, detesta os cistercienses), ela é antes Jerusalém”. Cf. La medida del mundo. Representación del espacio en la Edad Media, Ed. Catedra, Madrid, 1994, p.130.
[56] Cf. J. M. de la TORRE, op. cit., p.16, e “Entre Jerusalem y Babilonia: la vida humana como utopia y esperanza” in Obras completas de San Bernardo, Biblioteca de Autores Cristianos, Vol. VIII, pp.417-429.
[57] A Patrística cristã exerceu um papel fundamental nos pensadores medievais na medida em que continha a via para o esclarecimento de questões entretanto tornadas fundamentais. A resposta para o problema da oposição entre Jerusalém e Babilónia foi, a este nível, decisivo. Cf. P. Zumthor, “Da Bíblia ao Talmude” e “A Idade Média de Babel” in Babel ou o Inacabamento ­— Reflexão sobre o mito de Babel, Ed. Bizâncio, Lisboa, 1998, pp.69-107.
[58] Cf. J. M. de la Torre,op. cit., p.25.
[59] Ibidem, p.25. De acordo com este autor, outro teólogo cisterciense, Otão de Freising, desenvolve este tema numa perspectiva ainda mais pessimista.
[60] Ibidem, p.16.
[61] Ibidem, pp.25-26. Vd. tb. São Bernardo, Sentenças, II, 2: “Inter Babylonem et Ierusalem nulla est pax, sed guerra continua”.
[62] Cf. J. M. de la TORRE, op. cit., p.26, nota 142.
[63] Ibidem, p.27.
[64] Ibidem, p.27.
[65] São Bernardo, Parábolas, III, 4.
[66] Enquanto o Templo constituiu sempre alegoria e símbolo para os autores patrísticos e medievais, a Anastasis constantiniana, embora mantivesse o seu significado litúrgico, não logrou obter o significado espiritual do mais importante lugar da Cidade Santa, associado a inúmeros eventos da tradição cristã. Desta multitude de referências ao Templo destacam-se a circunstância de ele ser o lugar associado, entre outros, ao sacrifício de Isaac por Abrãao, às profecias do Antigo Testamento, a episódios da vida da Virgem e de Cristo —como a Apresentação no Templo, Jesus entre os Doutores, a expulsão dos Vendilhões do Templo, e a sua resposta aos Judeus “Destruí este Templo e em três dias eu o erguerei novamente”— e às visões do Livro do Apocalipse. Isto explica o facto de o Templum Domini ser representado, nos mapas de Jerusalém do século XII, como o mais importante edifício da Cidade Santa.Cf. S. Schein “Between Mount Moriah and the Holy Sepulchre: The changing traditions of the Temple Mount in the central Middle Ages” in Traditio, nº40, 1984, pp.175-195.
[67] Livro de Ezequiel, 60-63.
[68] A cidade de Jerusalém, contudo, não seria cúbica no sentido literal, mas sim erigida segundo princípios cúbicos.
[69]  Na sua obra De Templo, este autor, muito influenciado pelo Bispo de Hipona, considera o edifício do Templo de Salomão como o sinal da ecclesia universal, numa perspectiva histórica, aludindo às suas transformações ao longo dos tempos.
[70] Cor., 6.19.
[71] Cf. Temple and Contemplation, The Institute of Ismaili Studies, Islamic Publications, Londres, 1986.
[72] Ibidem, p.339.
[73] Corbin considera que a designação “Mesquita de Omar” é errónea por este monumento se situar no lugar exacto do rochedo que constituía o lugar mais sagrado do antigo Templo. No entanto, aquele nome adveio da homenagem que o Islão consagrou a um dos seus mais importantes propagadores, que ainda era conhecido pelos Templários, durante o domínio cristão de Jerusalém, no século XII.
[74] Cf. Temple and Contemplation, p.343.
[75] Cf. “Bernard of Clairvaux and the Temple of Solomon“, Law, custom, and the social fabric in medieval EuropeWestern Michigan University, 1990, pp.73-88.
[76] Segundo Sylvia Schein “durante o século XII, o Templo do Senhor tornou-se também o símbolo dos cavaleiros templários. Embora estes residissem no Templo de Salomão, escolheram o outro santuário como o seu emblema, possívelmente porque o termo “templum” era partilhado pelos dois principais monumentos do Monte. Qualquer que fosse a razão, o selo da Ordem carregava a imagem do Templo do Senhor e a inscrição “Sigillum Militum de Templo Christi””. Cf. S. Schein, op. cit., p.191.
[77] Cf. “Laude novae militiae”, cap. in Obras completas de San Bernardo, Biblioteca de Autores Cristianos, Vol. I, p.510-515.
[78] Cf. “Introduction à quelques études sur St. Bernard”, Collectanea cisterciensiaXXXVI, 1974, p.139.

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