A encruzilhada da esquerda brasileira

A encruzilhada da esquerda brasileira

José Carlos Freire *
O desafio da esquerda
brasileira atual parece-me ir muito além do momento eleitoral e, nesse caso,
suscita o debate não apenas sobre a urgência de um projeto nacional que supere
nosso capitalismo dependente, mas, sobretudo, sobre os sujeitos históricos que
podem dar forma e matéria a tal projeto
É aí que a questão de São Paulo
ganha um relevo maior. Direto ao ponto: a encruzilhada da esquerda me parece
ser exatamente a de se definir entre uma aposta ainda no PT ou a aceitação de
que o ciclo do Partido, como aglutinador das forças populares e de esquerda já
se tenha fechado (tomo “esquerda” aqui de modo amplo, como conjunto das forças
que se orientam pela superação do modelo colonial, pela autonomia
político-econômica do Brasil frente ao imperialismo, o que nos encaminha,
consequentemente, ao socialismo). Isso se reflete nas duas posições que se
colocam agora, assim como na eleição de Dilma: votar no PT para evitar que o
PSDB ganhe – posição majoritária dos partidos, grupos e movimentos de esquerda
– ou anular o voto, como a orientação do diretório municipal do PSol em SP.
A primeira posição implica,
necessariamente, em apontar uma distinção entre PT e PSDB; a segunda, em tomá-los
como versões de um mesmo (anti)projeto de Brasil. Conversando com pessoas das
duas posições nos últimos dias eu me lembrei de um texto de A. Gramsci de 1934,
em um dos Cadernos do Cárcere no qual aborda o papel do jornalismo e das
revistas. O debate corre em torno do desafio de formação de uma consciência
coletiva na construção do socialismo quando aparece essa frase que me é muito
sugestiva: “Buscar a real identidade na aparente diferença e contradição, e
procurar a substancial diversidade sob a aparente identidade é a mais delicada,
incompreendida e contudo essencial virtude do crítico das idéias e do
historiador do desenvolvimento histórico”.
Fazendo uso dessa citação,
parece-me que uma grande parcela da esquerda ainda se orienta pela “aparente diferença
e contradição” entre PT e PSDB, o que, no limite, implica em dizer que o PT
ainda está no campo da esquerda. Orientações como a do voto nulo numa eleição
em que os dois partidos se confrontam ou a tomada em conjunto das últimas
quatro gestões (FHC e Lula) como processo de continuidade são elementos que
parecem apontar a real identidade não só entre as duas siglas mas entre a
maioria absoluta dos grandes partidos atuais. Chame-se isso de “tendência ao
centro” ou “direitização” não importa tanto, o resultado é que tanto as
urgentes mudanças estruturais quanto o socialismo saem totalmente da pauta, do
discurso e do modo de governar.
Um argumento merece ser bem
refletido: na cidade de São Paulo como no Estado de Minas, o estilo psdebista
de governar mostra-se muito mais truculento e intolerante que o petista. Isso
embasa muitas organizações populares a preferirem o PT no governo, pois terão
uma gestão que dará mais condições de avanço nas suas lutas e,
consequentemente, menos repressão policial. O que esse argumento, muitas vezes,
esconde é que: sob o PT, as melhores condições de organização de luta, embora
estejam no plano da idéia, não se materializam, pois diluem-se e se volatilizam
na burocracia e na retórica. O PT pode, inclusive, e o faz, financiar
iniciativas de organização popular, mas mantendo-as “sob o seu manto”. Isso que
o lulismo representou, no melhor estilo sindical pragmático, de tomar todas as
forças contraditórias e ajeitá-las “dentro do Governo”, ocultando a real
diferença e contradição sob a aparente identidade. Essa habilidade lulista
neutralizou o potencial crítico de conquistas históricas importantes da
população brasileira, não obstante avanços pontuais. Para ficar no âmbito da
Universidade, dois exemplos bastam: a expansão universitária a política de
reparação (cotas) sociais ou étnicas.
O argumento das organizações
populares ignora aquilo que Maquiavel aprofundou nos seus estudos sobre
conservação e criação de novos Estados. Quando utiliza a metáfora do Centauro –
metade fera e metade homem – para explicar a arte de governar, Maquiavel nos
ajuda a compreender que o Estado é sempre a combinação de força e consenso, ora
uma aparecendo mais, ora outra, ora as duas em equilíbrio – arte do bom Príncipe.
Tudo isso para dizer que, sendo a truculência policial do PSDB – a força –,
sendo a manobra burocrático-estatal do PT – o consenso –, as condições de
organização da luta pelo socialismo são igualmente difíceis, apenas se
diferenciando no modo como aparecem. Além do que, cabe ressaltar um componente
subjetivo muito forte na relação das organizações de luta com o PT. Ama-se o PT
pelo que ele foi, mais do que propriamente se o toma de modo crítico e nas
condições reais em que se apresenta agora. 
Nesse sentido, posições de
superação do petismo como a do voto nulo em SP, por exemplo, rasgam aquele
manto sagrado com que o PT tem-se coberto nos últimos dez anos, em especial,
reivindicando para si um grau de bondade acima da turma do mal, representada
pelo PSDB. Como se deixar o PSDB vencer fosse a pior desgraça possível. Essa
insistência da cúpula do PT em reduzir o debate (ou melhor, esconder a falta
dele) a um jogo de bem contra o mal irrita, menospreza e subestima aqueles que
estão pensando a superação da desigualdade interna e da dependência externa,
elementos que, como já se salientou, saíram da pauta desde a “Carta ao Povo
Brasileiro” na campanha de Lula.
Nesse sentido, quando se toma a
formação histórica do Brasil e a fase atual do capitalismo temos dois desafios
enormes: um é o de apontar a “real identidade na aparente diferença” entre PT e
a direita; outro, correlato e igualmente importante, é o de “procurar a
substancial diversidade sob a aparente identidade” entre a esquerda e o PT.
Enquanto não superar essa
questão mal resolvida, a esquerda brasileira permanece na encruzilhada. E
permanecer, quando o movimento histórico exige que se avance, significa
regredir.
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(*) Professor da UFVJM – Teófilo Otoni/MG.

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