O que é o Iluminismo

O que é o Iluminismo
 A Resposta à pergunta: o que é o Iluminismo? apareceu em 1784 em uma revista berlinense.
1. Definição do Iluminismo
            O
iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado
a ele próprio.
 Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio
intelecto sem a guia de outro.
 Imputável a
si próprios
 
é esta menoridade se
a causa dela não depende de um defeito da inteligência, mas da falta de decisão
e da coragem de servir-se do próprio intelecto sem ser guiado por outro.
 Sapere aude!1 Tenha a coragem de servir-te da tua própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo.
2. Dificuldade para o homem de
sair do estado de menoridade
            A
preguiça e a vileza são as causas pelas quais tão grande parte dos homens,
depois que a natureza há muito tempo os liberou da heterodireção (naturaliter
minorennes
), ainda permanecem de bom grado em estado de menoridade por toda
a vida; e esta é a razão pela qual é tão fácil que outros se erijam como seus
tutores. É tão cômodo ser menor! Se eu tiver um livro que pensa por mim, um
diretor espiritual que tem consciência por mim, um médico que decide por mim
sobre a dieta que me convém etc., não terei mais necessidade de me preocupar
por mim mesmo. Embora eu goze da possibilidade de pagar, não tenho necessidade
de pensar: outros assumirão por mim essa enjoada tarefa. De modo que a
estrondosa maioria dos homens (e com eles todo o belo sexo) considera a
passagem ao estado de maioridade, além de difícil, também muito perigosa, e
provêm já os tutores que assumem com muita benevolência o cuidado vigilante
sobre eles. Depois de tê-los em um primeiro tempo tornado estúpidos como se
fossem animais domésticos e ter cuidadosamente impedido que essas pacíficas
criaturas ousassem mover um passo fora do andador de crianças em que os
aprisionaram, em um segundo tempo mostram a eles o perigo que os ameaça caso
tentassem caminhar sozinhos. Ora, este perigo não é assim tão grande como se
lhes faz crer, pois ao preço de alguma queda eles por fim aprenderiam a
caminhar: mas um exemplo deste gênero os torna em todo caso medrosos e em geral
dissuade as pessoas de qualquer tentativa ulterior.
            É, portanto, difícil para cada homem particular
desembaraçar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma segunda
natureza. Ele chega até a amá-la e, no momento, é realmente incapaz de
servir-se de seu próprio intelecto, pois nunca lhe foi permitido colocá-lo à
prova. Regras e fórmulas, estes instrumentos mecânicos de um uso racional, ou
melhor, de um abuso de suas disposições naturais, são os laços de uma
menoridade eterna. Mesmo que deles conseguisse se soltar, mais não faria que um
salto inseguro até mesmo sobre os mais pequenos buracos, pois não estaria
treinado a tais movimentos livres. Portanto, apenas poucos conseguem, com a
educação do próprio espírito, desembaraçar-se da menoridade e apesar de tudo
caminhar com passo seguro.
            Que, ao contrário, um público2 se ilumine por si próprio é coisa grandemente
possível; ou melhor, se lhe for deixada a liberdade, é quase inevitável. Nesse
caso, com efeito, se encontrarão sempre, até entre os tutores oficiais da
grande multidão, alguns livres pensadores que, depois de terem sacudido de si o
jugo da tutela, espalharão o sentimento da avaliação racional do próprio valor
e da vocação de todo homem a pensar por si próprio. A este respeito há o
fenômeno singular de que o público, que em um primeiro tempo foi colocado por aqueles
sob tal jugo, os obrigue depois ele próprio a aí permanecerem, tão logo tenham
a isso instigado aqueles de seus tutores que fossem eles próprios incapazes de
qualquer esclarecimento. Semear preconceitos é tão perigoso exatamente porque
terminam por recair sobre seus autores ou sobre os predecessores de seus
autores. Por isso o público pode chegar ao esclarecimento apenas lentamente.
Talvez uma revolução poderá, sim, determinar a liberação em relação a um
despotismo pessoal e de uma opressão ávida de ganho ou de poder, mas nunca uma
verdadeira reforma do modo de pensar. Ao contrário: novos preconceitos servirão
da mesma forma que os antigos para colocar no andador a grande multidão de quem
não pensa.
3. Condição essencial para o
Iluminismo
 é a liberdade de fazer uso público
da razão
            Todavia, para esse esclarecimento não é preciso mais
que a
 liberdade; e precisamente a mais inofensiva de todas as
liberdades, isto é, a de
 fazer
uso público
 da própria razão em
todos os campos. Mas em todos os lugares ouço gritar:
 não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas fazei exercícios militares! O
intendente de finanças: não raciocineis, mas pagai! O clero: não raciocineis,
mas acreditai! (Há apenas um único senhor no mundo3
 que diz: raciocineis o quanto quiserdes e sobre tudo aquilo que quiserdes, mas obedecei!).
Aqui existe, em todo lugar, limitação da liberdade.
a. Uso público e uso privado da
razão
             Todavia, qual limitação é obstáculo para o Iluminismo,
e qual não o é, ou melhor, até o favorece? Respondo: o uso
 público da
própria razão deve ser livre em todo tempo, e apenas ele pode atuar o
esclarecimento entre os homens; o
 uso
privado
 da razão, ao contrário,
pode muito freqüentemente sofrer estreitas limitações, sem que por isso o
progresso do esclarecimento seja particularmente obstaculizado. Entendo por uso
público da própria razão o uso que alguém faz dela, como
 estudioso,
diante de todo o público dos
 leitores. Chamo, ao contrário, de uso privado da razão aquele
que a um homem é lícito fazer dela em certa profissão ou
 função civil da qual é investido. Ora, para muitas operações que se referem ao
interesse da comunidade é necessário certo mecanicismo, pelo qual alguns
membros dela devem se comportar de modo puramente passivo em que mediante uma
harmonia artificial o governo os induza a concorrer aos fins comuns ou ao menos
a não contrastar com estes. Aqui, obviamente, não é permitido raciocinar, mas
deve-se obedecer. Todavia, enquanto ao mesmo tempo estes membros da máquina
governante se consideram como membros de toda a comunidade e, mais ainda, da
sociedade cosmopolita, e são, portanto, na qualidade de estudiosos que com os
escritos se dirigem a um público no sentido próprio da palavra, eles podem
certamente raciocinar, sem com isso lesar a atividade à qual estão destinados
como membros parcialmente passivos. Desse modo, seria bastante pernicioso que
um oficial, ao qual foi dada uma ordem por seu superior, quisesse em serviço
publicamente raciocinar sobre a oportunidade e a utilidade dessa ordem: ele
deve obedecer. Mas é iníquo impedir que ele, na qualidade de estudioso, faça
suas observações sobre erros cometidos nas operações de guerra e as submeta ao
julgamento de seu público. O cidadão não pode se furtar a pagar os tributos que
lhe são impostos; e uma crítica inoportuna de tais imposições, quando devem ser
executadas por ele, pode até ser punida como escândalo (pois poderia induzir a
desobediências generalizadas). Contudo, este não age contra o dever de cidadão
se, como estudioso, manifestar abertamente seu pensamento sobre a
inconveniência ou também sobre a injustiça destas imposições. Dessa forma,
espera-se que um eclesiástico ensine o catecismo aos aprendizes e à sua
comunidade religiosa segundo o credo da Igreja da qual depende, porque é com
esta condição que ele foi assumido; mas, como estudioso, ele tem a plena
liberdade e até a tarefa de comunicar ao público todos os pensamentos que um
exame severo e bem intencionado lhe sugeriu a respeito dos defeitos daquele
credo, e também suas propostas de reforma da religião e da Igreja. Nisso não há
nada de que a consciência possa tornar-se culpada. Aquilo que ele ensina como
parte de sua profissão, como funcionário da Igreja, ele de fato o expõe como
algo em torno do qual não tem a liberdade de ensinar conforme suas próprias
idéias, mas que tem a tarefa de ensinar segundo as instruções e em nome de um
outro. Ele dirá: nossa Igreja ensina isto e aquilo, e estas são as provas de
que ela se vale. Toda a utilidade prática que pode derivar para sua comunidade,
ele portanto a tirará dos princípios que ele próprio não subscreveria com plena
convicção, mas a cujo ensinamento pode em todo caso se empenhar porque não é de
modo algum impossível que neles não se encontre alguma verdade, e em todo caso,
ao menos, neles não se encontra nada que contradiga a religião interior. Se, ao
contrário, acreditasse encontrar aí algo que a contradiga, ele não poderia
exercitar sua função com consciência; deveria demitir-se. O uso que um ministro
de ensino oficial faz da própria razão diante de sua comunidade religiosa é,
portanto, apenas um
 uso privado; e isso porque aquela comunidade, por maior que seja,
é sempre apenas uma reunião doméstica; e sob este aspecto ele, como padre, não
está livre e não o pode sequer ser, pois exerce um cargo que lhe vem de outros.
Ao contrário, como estudioso que fala com os escritos ao público propriamente
dito, isto é, ao mundo e, portanto, como eclesiástico no
 uso público de sua própria razão, ele goza de uma liberdade ilimitada de valer-se de
sua própria razão e de falar por si mesmo. Que os tutores do povo (nas coisas
espirituais) devam por sua vez permanecer sempre na menoridade é um absurdo que
tende a perpetuar os absurdos.
4. Criar obstáculos contra o
progresso das luzes
 é um crime contra a natureza
humana
             Contudo,
uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia eclesial ou uma
venerável “classe” (como ela se autodefine entre os holandeses), não teria por
acaso o direito de obrigar-se por juramento a certo credo religioso imutável,
para exercer de tal modo sobre cada um de seus membros e, por meio deles, sobre
o povo uma tutela contínua e até para tornar eterna essa tutela? Eu digo que
isso é de fato impossível. Tal contrato, dirigido a manter a humanidade para
sempre longe de qualquer progresso ulterior no esclarecimento, é irritante e
nulo de modo absoluto, mesmo que fosse sancionado pelo poder soberano, pelas
Dietas imperiais e os mais solenes tratados de paz. Nenhuma época pode
coletivamente empenhar-se com juramento a pôr a época sucessiva em uma condição
que a coloque na impossibilidade de estender seus conhecimentos (sobretudo
quando são tão necessários), de libertar-se dos erros e em geral de progredir
no esclarecimento. Isso seria um crime contra a natureza humana, cuja
originária destinação consiste justamente nesse progresso; e, portanto, as
gerações sucessivas estão perfeitamente legitimadas a rejeitar tais convenções
como não autorizadas e ímpias. A pedra-de-toque de tudo aquilo que se pode impor
como lei a um povo está no quesito: um povo pode impor a si próprio tal lei?
Isso sim seria uma coisa possível, por assim dizer, na espera de uma lei melhor
e por breve tempo determinado, com o fim de introduzir certa ordem, mas com a
condição de que entrementes se deixe livre todo cidadão, sobretudo o homem de
Igreja, de fazer sobre os defeitos da instituição vigente suas observações
publicamente, em sua qualidade de estudioso, isto é, mediante seus escritos; e
isso enquanto a ordem constituída se mantiver sempre em vigor até que as novas
visões nessa matéria não tenham alcançado no público tanta difusão e crédito
que os cidadãos, com a união de seus votos (mesmo que não de todos), estejam em
grau de apresentar ao soberano uma proposta dirigida a proteger as comunidades
que estivessem de acordo para uma mudança para melhor da constituição religiosa
segundo suas idéias, e sem prejuízo para as comunidades que, ao contrário,
pretendessem permanecer na antiga constituição. Mas entrar em acordo para manter
em vigor, mesmo que apenas pela duração da vida de um homem, uma constituição
religiosa imutável que ninguém possa publicamente pôr em dúvida, e com isso
anular por assim dizer uma fase cronológica do caminho da humanidade para sua
melhora e tornar essa fase estéril e por isso mesmo talvez até danosa para a
posteridade, não é absolutamente lícito. Um homem pode, de fato, por sua
própria pessoa, e também em tal caso apenas por certo tempo, diferir de
iluminar-se sobre aquilo que ele próprio é destinado a saber; mas renunciar a
isso para si e, mais ainda, para a posteridade, significa violar e calcar aos
pés os sagrados direitos da humanidade. Ora, aquilo que nem sequer um povo pode
decidir a respeito de si próprio, menos ainda o pode um monarca a respeito do povo;
com efeito, seu prestígio legislativo se funda precisamente sobre o fato de que
em sua vontade ele resume a vontade geral do povo. Embora ele vigie para que
toda verdadeira ou presumida melhora não contrarie a ordem civil, ele não pode
de resto senão deixar seus súditos livres de fazer o que crêem necessário para
a salvação de sua alma. […] O monarca acarreta detrimento à sua própria
majestade caso se intrometa nessas coisas, considerando que os escritos nos
quais seus súditos colocam às claras suas idéias sejam passíveis de controle
por parte do governo, tanto se ele faz isso invocando a própria intervenção
autocrática e expondo-se à reprovação de que
 Caesar non
est supra grammaticos
,4 como, e com maior razão, se ele abaixa seu poder a
ponto de sustentar o despotismo espiritual de algum tirano em seu Estado contra
todos os outros seus súditos.
5. A época atual é “de
iluminismo”,
 e não uma época “iluminada”
             Se agora perguntarmos: nós, atualmente, vivemos em uma
era
 iluminada? então a resposta é: não, e sim em uma era de iluminismo.Que
na situação atual os homens tomados em massa já estejam em grau, ou que também
possam ser colocados em grau de valer-se seguramente e bem de seu próprio
intelecto nas coisas da religião, sem a guia de outros, é uma condição da qual
ainda nos encontramos muito distantes. Mas que a eles, agora, esteja aberto o
campo para trabalhar e emancipar-se para tal estado, e que os obstáculos à
difusão do esclarecimento geral ou à saída da menoridade a eles próprios
imputável pouco a pouco diminuam, disso temos, ao contrário, sinais evidentes.
[…]
            Um príncipe que não crê indigno de si dizer que
considera seu
 dever não prescrever nada aos homens nas coisas de religião,
mas deixá-los nisso em plena liberdade, e que, portanto, afasta de si também o
nome orgulhoso da
 tolerância, é ele próprio iluminado e merece que o mundo e a
posteridade reconheçam ser digno de elogio como aquele que por primeiro
emancipou o gênero humano da menoridade, ao menos por parte do governo, e
deixou livre cada um de valer-se de sua própria razão em tudo aquilo que é
questão de consciência. […] Este espírito de liberdade se estende também para
o exterior, até o ponto em que ele deve lutar contra obstáculos exteriores
suscitados por um governo que entende mal a si próprio. O governo, com efeito,
tem em todo caso diante dos olhos um resplandecente exemplo que mostra que a
paz pública e a concórdia da comunidade nada têm a temer da liberdade. Os
homens se empenham por si mesmos para sair pouco a pouco da barbárie, contanto
que não se recorra a instrumentos artificiais para nela mantê-los.
6. O Iluminismo deve se referir
sobretudo às coisas de religião
             Coloquei particularmente nas coisas de religião o ponto culminante do esclarecimento, isto é, da saída
dos homens de um estado de menoridade que deve ser imputado a eles próprios; em
relação às artes e às ciências, com efeito, nossos regentes não têm nenhum
interesse de exercitar a tutela sobre seus súditos. Além disso, a menoridade em
coisas de religião é entre todas as formas de menoridade a mais danosa e também
a mais humilhante. Mas o modo de pensar de um soberano que favorece aquele tipo
de esclarecimento vai ainda além, pois ele vê que até em relação à
 legislação por ele estabelecida não se corre perigo em permitir aos súditos fazer
uso
 público de sua razão e de expor publicamente ao mundo suas
idéias sobre um melhor arranjo da própria legislação, até criticando de modo
aberto a existente. […]
7. Um paradoxo: uma liberdade
civil maior põe maiores limites à liberdade do espírito do povo
             Todavia, também é verdade que apenas aquele que,
iluminado ele próprio, não tem medo das sombras e ao mesmo tempo dispõe a
garantia da paz pública de um exército numeroso e bem disciplinado, pode
enunciar aquilo que uma república não pode arriscar-se a dizer:
 raciocinai o quanto quiserdes e sobre tudo aquilo que
quiserdes; apenas obedecei!
 Revela-se
aqui um estranho e inesperado curso das coisas humanas; como, de resto, em
outros casos, considerando esse curso em tamanho grande, quase tudo nele parece
paradoxal. Um maior grau de liberdade civil parece favorável à liberdade do
 espírito do
povo, e todavia põe a ela limites intransponíveis; um grau menor de liberdade
civil, ao contrário, oferece ao espírito o espaço para desenvolver-se com todas
as suas forças. Portanto, se a natureza desenvolveu sob este duro invólucro o
germe do qual ela toma o mais inteiro cuidado, isto é, a tendência e vocação
para o
 livre pensamento, esta tendência e vocação gradualmente reage sobre o
modo de sentir do povo (motivo pelo qual este, pouco a pouco, torna-se sempre
mais capaz daliberdade de agir) e finalmente até sobre os princípios do
 governo, o
qual percebe que é vantagem para si próprio tratar o homem, que doravante é
 mais que uma máquina,5 de
modo conforme com a dignidade que ele tem.
I. Kant, Resposta à pergunta:
o que é o Iluminismo?
(1784).
____________________
1 “Tem a coragem de
saber!”: Horácio,
 Epístolas I, 2, 40).
2A expressão “o
público” tinha no séc. XVIII três possíveis acepções. Significava, em
contraposição ao indivíduo, a totalidade das pessoas reunidas em um certo lugar
ou espaço (província ou Estado), ou o público dos leitores de um determinado
escritor, e ainda o conjunto das pessoas que pertencem a uma época histórica.
 3Alusão a
Frederico II da Prússia (1740-1786).
4“O imperador não tem
autoridade sobre os gramáticos”.

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